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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

15
Nov11

A morte (De volta à vida - 13)

Publicado por Mil Razões...

 

A morte. Sempre a morte.

Estava ali. Havia algum tempo que estava ali. Naquele lugar onde uns se escondem e outros receiam entrar. Estava ali, na dor. Estava ali há algum tempo, nem muito, nem pouco, que o tempo nunca tem essa qualidade. Estava só ali. Imóvel. Uma mão presa à vida, que por muito que negasse estava mesmo ao lado, em todo o lado. Outra mão presa à morte, que não aceitava, teimando por isso em não largar. E a sua alma... A sua alma vagueava algures entre aquelas duas paragens, nunca se dando a nenhum dos lados com algo mais do que um tímido acenar por detrás de uma cortina translúcida, mas fechada. E aquela casa afinal era deles. Tinham lá estado, ainda estavam, voltariam a estar, uma qualquer destas ideias era tudo o que lhe bastava para continuar. Imóvel.

E a memória do jardim, do jardineiro. Havia feito um pacto com ele. Sem palavras. Se o jardineiro não soubesse já quem roubava as rosas do jardim, ficou a saber no dia em que inesperadamente dele se aproximou, oferecendo os seus préstimos para ajudar a cuidar daqueles seres plantados. E assim foi roubando rosas ao jardim, sempre que o amor lho segredava ao ouvido.

Sinais da vida. Sempre sinais da vida. Desta vez era o jardineiro que lhe tocava à porta. Não quis atender, preferiu manter-se no crucifixo. Só de lá subiu para a rua passadas umas horas, em anonimato.

Nessa altura ao sair de casa, reparou que já não estavam no mesmo sítio os pés de roseira, há uns dias partidos, pela forte tempestade que por lá passara. A terra de onde nasciam estava agora arada, mexida, virgem de novo. O que restava do velho roseiral pronto para seguir a sua viagem. Parou os seus olhos ali algum tempo. Sempre o tempo, sempre algum tempo. Mas de súbito, sem comandar ou entender, fizeram seus olhos uma quadratura, do chão onde há muito estavam, para a frente onde agora pousavam. Pousavam em camélias, cinquenta, cem, talvez mais de duzentos botões de camélia. Teriam estado sempre ali? Seguramente que não, ou talvez não se recorde, ou talvez apenas se recorde dos pés de roseira. Poemas à espera da escuta que os leve à escrita. Escutou fundo e voltou para casa, em jeito de quem não enjeita rematar o poema das camélias. Juntou as roupas que ficaram, uma manta que algumas vezes os destapara aos dois, uma foto escondida algures no mofo de uma gaveta e uma escova de uns dentes, que tinham sido lindos, mas já não podia saber se eram. Juntou ainda as cartas. As que tinha recebido e guardado, as que escreveu e nunca tinha enviado. Fez um embrulho com tudo, o que ocupava pouco mais do que uma saca plástica, do tamanho de uma prisão. Colocou tudo na carruagem de primeira classe, ao lado daquela onde viajavam as rosas. A morte. Sempre e só a nossa morte.

De volta a casa, sentiu pela primeira vez as gotas de água que a tempestade deixara aos botões de camélia. Encostou-lhes os lábios, há muito cansados de estarem secos.

De volta. De volta à Vida.

 

Vladimiro Fernandes (articulista convidado)

 

11
Nov11

20 metros (De volta à vida - 12)

Publicado por Mil Razões...

 

Aqueles 20 metros que distanciavam o 5º andar onde vivia e o chão que pisava todos os dias para levar as crianças à escola, separavam a minha ansiedade entre a vida e a morte. Começava a evitar ir à varanda, pois sempre que isso acontecia, pensamentos, que na verdade não desejava, assolavam-me e permitiam-me questionar se não seria mais fácil acabar com tudo ali mesmo. Parecia tão fácil, tão acessível, tão rápido! Aqueles 20 metros definiam a diferença entre estar vivo e não estar, entre sofrer e não sofrer, entre sentir e deixar de o fazer. As crises de ansiedade começavam a ser mais regulares, a falta de ar, a frustração de não conseguir atingir a paz de alma que desejava. A crise, as dificuldades económicas, pareciam motivos insuficientes para que tais pensamentos navegassem em mim, mas o cansaço fala muitas vezes mais forte e retira-nos o discernimento que se quer coerente em situações mais difíceis. Deixei de ir à varanda. E se o fazia, não me aproximava do muro que me permitia abeirar dos metros que me separavam do chão, e quando o fazia olhava para o sol, ou as estrelas, e permitia-me admirar a beleza que me rodeava. Quis viver. Escolhi viver. E atravessar esses 20 metros, de elevador ou usando as escadas, e continuar a levar os meus filhos todos os dias á escola… permiti-me continuar a vê-los crescer e ter a certeza de que aqueles sorrisos, o brilho do sol, ou a luz das estrelas me bastavam para ser feliz.

 

Sónia Pessoa

 

08
Nov11

Ser, simplesmente (De volta à vida – 11)

Publicado por Mil Razões...

 

“De volta à vida”.

Não me ocorre dizer muito a propósito. Não tenho experiências pessoais suficientemente interessantes para contar. Nunca voltei, porque nunca fui. Tenho-me mantido por aqui.

Podia falar do caso do meu pai, que depois de um enfarte do miocárdio, teve de ser ressuscitado com choques elétricos. Não sei quanto tempo esteve “ausente”, ou “morto”, já agora. Ele próprio nada tem para contar. Não se recorda de ter visto nenhuma luz branca, nem de ter tido nenhuma outra experiência transcendente com que nos pudesse surpreender. Não se lembra de nada.

E voltou exatamente o mesmo. Logo que pôde levantar-se da cama, tentou convencer uma enfermeira a dar-lhe um cigarro, às escondidas do médico.

O seu renascimento para a vida, nada trouxe de novo. Não lhe abriu o espírito e ele não se questionou sobre o sentido ou o valor da vida. Pensou apenas que se tinha “safado”, a custo, e que dali para a frente, tinha de ser mais cuidadoso.

Mas ele era ele, antes e depois, e como seria de esperar, não foi cuidadoso o suficiente e passados alguns anos, teve que ser submetido a uma cirurgia coronária, com triplo bypass. Dessa vez, pensou ter esgotado as oportunidades que a vida lhe oferecera e tentou, com relativa convicção, mudar de vida, achando que tinha renascido mais uma vez.

“De volta à vida”, terá pensado ele e nós.

 

O tempo passou, a vida foi de novo sendo tomada como algo garantido e seguro e ele voltou a ser quem sempre foi, vivendo o seu dia-a-dia, sorvendo o momento em cada passa de cigarro.

De vez em quando, se lhe perguntarem, talvez fale sobre a sua passagem pelo hospital de Coimbra, sobre o médico que o operou e concluirá mais uma vez, que a sorte lhe sorriu, sem saber de facto porquê. Logo a seguir, o mais provável, é que se lembre de alguma história mais exótica vivida na Índia, onde fez a tropa e rapidamente se esqueça de ter sido operado de peito aberto, onde lhe pararam o coração e o mantiveram a uma temperatura não aceitável para gente viva, durante horas.

 

Das duas vezes em que a sua vida foi interrompida, ele acabou por retomá-la da forma mais natural que sabia e todas as suas ações foram no sentido de uma continuidade relativa.

Renascer… dá afinal trabalho e exige demasiado.

 

Não há grandes ilações a tirar sobre este caso, mas ocorre-me dizer que podemos “morrer” várias vezes durante a nossa existência e voltar todas as vezes, com renovada energia, como se fôssemos viver algo novo e tudo passasse a ser diferente dali para frente, mas na verdade nós somos o que somos e vamos manter-nos assim, atravessando todas as interrupções da vida.

 

Teresa Moura (articulista convidada)

 

04
Nov11

“Serena” (De volta à vida – 10)

Publicado por Mil Razões...

 

Passou muito tempo a cuidá-la. Desde aquele dia em que olhou a mãe nos olhos e a soube doente. Todo o seu ser envolveu-se em angústia. Mas não a sua face, de ser tão forte que era. Abraçou-a. Toda a sua infância atravessou-se-lhe aos olhos. Fora tão feliz. E era-o. Graças tanto àquela mãe. Aquela querida mãe.

 

Quando soube, tinha acabado de tirar fotografias ao céu azul. Estava um pouco zangada com os problemas da vida quotidiana. Quando senti a sua voz, o azul tornou-se vivo. Serena tem essa capacidade. Incrível! Parecia como sempre, serena. Reclamei com a vida. Percebi que algo estava diferente. Foi quando a Serena me contou. O céu tornou-se escuro de repente.

 

Serena, era também mãe. Tinha um pequeno ser nos seus braços, e chorava por dentro ao pensar o que seria deixá-lo. Agradeceu à mãe, naquele momento, todo o seu amor e dedicação. Afinal, não era só uma mãe. Era uma confidente, uma amiga, o seu apoio.

Serena, como mulher determinada que era, decidiu que iria apoiar a mãe a ultrapassar aquela dor intensa, aquele medo, que a doença trazia. Por mais que doesse. E cuidou. Todos os dias. Permaneceu entre a esperança e a tristeza. Permaneceu em todas as pequenas coisas da vida. A mãe de Serena era também uma guerreira nata, e por isso, ajudou também Serena nesta caminhada. Porém, Serena, a pouco e pouco, deixou o seu vibrante riso. Sorria apenas. E eu tinha tantas saudades da Serena.

 

Observei-a do longe, que a distância física permite. Via a apagar-se. Via refugiar-se no lar. Com a mãe. Com o filho. Com a família. Compreendi-a, sem nunca conseguir imaginar o que sentia Serena. Porque ao tentar imaginar, a angústia tornava-se insuportável, dolorosa. Serena chorou sempre num refúgio. Todo o seu ser passou a centrar-se na mãe. Felizmente, o pequeno rebento, graças à sua inocência tão abençoada, lançava rasgos nas bocas de todos. Risos. Aquela pequena bênção permitia vida, num ser que definhava aos poucos.

 

Um dia tornou-se óbvio. Estava para breve a despedida. Às vezes tornava-se tão surreal. Para a Serena tornara-se um modo de vida.

O dia chegou. A mãe pediu com os seus olhos a presença de Serena e seus familiares. Todos a olharam com dor, gratidão, amor, carinho, medo, saudade. A mãe apenas sorriu, e partiu. Partiu como um anjo, e como anjo da guarda ficou, daquela querida família.

 

Vi Serena. Estava ausente. Tinha vontade de chorar, mas não podia. Ela mantinha-se inteira, embora quebrada. Foi tão difícil! Conseguem imaginar?! Eu não! Parte da minha Serena morrera com a mãe. Demorou a voltar a soltar uma gargalhada. Teve de se reorganizar. Pelo seu filho também. Queria ser a mãe que tivera. A ausência era demasiado dolorosa. Mas Serena tinha de voltar à vida. Mas, como?

A Vida mostrou-lhe outra face. Nunca mais será a mesma. Já possui o seu riso, as gargalhadas, mas Serena, continua a sofrer muito. Será sempre a Serena, mas há uma parte de Serena que partiu.

Ainda hoje, Serena, procura voltar à vida, a cada dia.

 

(Para a minha querida amiga “Serena”, num dia tão especial, o dia da sua existência – 19 de outubro)

 

Cecília Pinto

 

01
Nov11

Pausa para a vida (De volta à vida – 9)

Publicado por Mil Razões...

 

Há pausas que são deliciosas. Comparo-as à primeira dentada numa pasta de chocolate, quando o meu cérebro começa a assimilar todo o prazer gustativo que esta iguaria está a proporcionar-lhe. Estes primeiros segundos de descoberta do sabor são para mim, inigualáveis. Todo o meu ser fica envolvido neste deleitoso sabor. As dentadas seguintes, por muito apreciadas que sejam, já não superam o impacto que o primeiro contacto ofereceu; o cérebro habitua-se aos poucos ao sabor e cai na rotina dos automatismos. Em contrapartida, os primeiros segundos são uma tomada de consciência do aqui e do agora; neste momento dou toda a minha atenção às minhas papilas gustativas em euforia. Neste instante, não quero saber do telefone a tocar, dos assuntos pendentes, dos problemas para resolver ou das contas para pagar. Neste momento de pausa, só quero estar concentrada em mim, na minha respiração, no meu corpo vivo, nesta bolha de bem-estar que se desenhou à minha volta e que se vai manter enquanto os meus olhos ficarem fechados. Sei que lá fora, do outro lado das minhas pálpebras, o turbilhão continua; mas neste momento, deixo as pressas do lado de lá e fico do lado de cá, a saborear a minha primeira dentada. Inspiro e expiro muito lentamente, observo-me do lado de dentro. Apercebo-me do espaço que existe dentro de mim, não como um vazio, mas sim com um sentimento de amplitude, de abertura de mim mesma. Sinto-me plena e quase pronta a abrir os olhos. Gozo dos últimos segundos desta minha viagem interior, deste surto de vida que surge de dentro de mim. Daqui a instantes vou regressar ao mundo exterior, retemperada. Centrada em mim, desperto novamente e então abro os olhos.

 

Estefânia Sousa

 

28
Out11

Até sempre… (De volta à vida – 8)

Publicado por Mil Razões...

 

Era mais uma das visitas que fazia por altura do Natal, como tantas outras. Sofia, encontrou o seu padrinho combalido mas sorridente, aconchegado no sofá e no calor do cobertor. A sua cabeça careca, que refletia o brilho das luzes natalícias, era estranha. Sim, é verdade que a idade já era avançada e o cabelo ia caindo, mas havia algo de anormal. Animado, o seu padrinho foi desfiando, orgulhosamente, o rol dos últimos acontecimentos e Sofia foi percebendo o quanto havia perdido com a sua ausência: dores de cabeça, mal-estar, idas ao hospital, diagnóstico, operação e recuperação. “Como foi possível? Tudo tão rápido….”. Sofia procurava recuperar do choque das notícias que recebia, ao mesmo tempo que procurava nos olhos do seu padrinho algo que pudesse não estar a ser dito em palavras. Mas tudo o que encontrou foi alegria, muita, pelo sucesso da operação, pelo Natal que passaria com a família, os filhos e os queridos netos. “Estou feliz Sofia, o pior já passou! Dá-me um abraço!”. No caminho de regresso a casa, as emoções ainda à flor da pele turvavam os pensamentos de Sofia. O alívio de que, afinal, estava tudo bem e não passara de um grande susto não era o suficiente para abrandar a tristeza de não ter estado ao seu lado a apoiá-lo, com palavras, com carinho, com a sua presença. “Mas sim, ficou tudo bem e isso é que interessa” – dizia Sofia para com os seus botões na difícil tentativa de encontrar algum reconforto.

 

O Novo Ano chegou. Com ele novas esperanças e projetos e a tristeza de Sofia ia tornando-se mais leve a cada dia que passava. Até que um dia, receou atender uma chamada. O nome que insistia piscar no visor do seu telemóvel era tão raro como preocupante e não augurava nada de bom. Os piores receios de Sofia confirmaram-se e daí foi diretamente para o hospital. Nos olhos do seu padrinho, uns meses antes, havia apenas encontrado alegria sincera. Contudo, o susto tornara-se numa certeza, irremediável e fatal, e a recuperação não passara de uma ilusão. Algumas semanas depois, o homem que visitava religiosamente já não parecia o mesmo que sempre conheceu. Não reconhecia na sua face o carinho dócil dos seus olhos e o sorriso terno de um menino. A doença flagela o corpo mas não se esquece de espezinhar a alma. Numa das últimas visitas, já só o corpo parecia marcar presença naquela cama fria. Em esforço, pediu a Sofia que se aproximasse. A sua voz era já fraca e apesar do grande esforço que fez foi apenas percetível um sussurro: “Sofia, estou a morrer…”. Encurralada entre a vida e a morte, Sofia não sabe se conseguiu conter as lágrimas que inundavam os seus olhos, enquanto lhe afagava a testa quente. Sorriu e disse “Não tenhas medo padrinho, eu estou aqui.”

 

Se é verdade o que dizem sobre os mortos viverem um pouco sempre que os recordamos, hoje trago o meu padrinho de volta à vida.

 

Liliana Jesus

 

21
Out11

Águas calmas e prateadas (De volta à vida – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

A determinação a comandar os passos. Os passos mais rápidos à vista da ponte. À vista do fim. Observa o rio que corre lá em baixo, calmo, silencioso, não fossem os reflexos prateados da lua a denunciar os leves movimento das suas águas e dir-se-ia parado. Ela, sempre turbulenta, é atraída por esta calmaria. Lá em baixo, as águas calmas e prateadas fascinam-na.

Afasta-se do gradeamento, olha em volta. Ninguém! Foi assim toda a sua vida e é assim no seu derradeiro momento de vida. Ninguém!

Tira os sapatos e alinha-os um com o outro. Um saco com o telemóvel e o bilhete de identidade colocado ao lado dos sapatos. O alinhamento dos objetos, num momento destes, é patético de insignificante, mas continua a querer pôr ordem à sua volta.

Sobe para o gradeamento, olha novamente o rio.

Lá em baixo, as águas calmas e prateadas chamam-na. Aproximam-se. Sente a força da gravidade. Luta contra essa força. Quer recuar, sentir novamente os pés em cima da ponte, dominar os seus movimentos. Tarde de mais. Sente frio. Tem medo.

Vê as águas calmas e prateadas abrirem-se. Engolem-na!

 

Deitada no chão. O rio de águas calmas e prateadas ali ao lado. Cabeças debruçam-se sobre o seu corpo, movimentos rápidos sem som, uma luz azul a acender e a apagar. Parece-lhe estar no centro desta agitação. Fecha os olhos.

 

De volta à vida. O renascer é doloroso. Odeia-se pelo insucesso, desilude-se mais uma vez consigo mesma, zanga-se por a terem resgatado. No hospital todos se empenham numa luta para lhe salvar a vida. Uma luta na qual não quer participar. Os profissionais da saúde trocam olhares, de preocupação umas vezes, de esperança, outras. Zelam, observam, cuidam dela. Não desistiremos, garante-lhe uma enfermeira. Sente-se acarinhada. Rende-se.

Os outros doentes olham-na como se fosse diferente, comentam o seu caso, “quis pôr termo à vida”. Enganam-se. Ela também se enganou. Não se pode acabar com a vida onde ela não existe. Não quis acabar com a vida, quis acabar com a morte que havia dentro dela. Enganou-se quando pensou que a vida se esgotava nas contrariedades, nas angústias e tristezas que tantas vezes a assaltavam, ou na solidão que se lhe impunha. Enganou-se quando optou, obsessivamente, por se magoar mortalmente. Não se recorda de alguma vez se ter esquecido de si e ter olhado à sua volta. Nunca cativou ninguém, não conheceu a gratidão, o amor, a amizade.

Interiormente, tem muito trabalho para fazer e, quer fazer, porque não lhe salvaram partes do corpo - salvaram-lhe a vida.

 

Cidália Carvalho

 

14
Out11

Estar vivo não é o contrário de estar morto (De volta à vida – 4)

Publicado por Mil Razões...

 

Para os mais distraídos e para que não haja dúvidas, o melhor é dizê-lo de uma só vez: vamos todos morrer! É uma das maiores certezas desta vida e também uma das mais democráticas: toca a todos por igual e não contempla exceções.

Provoca algum transtorno, sim. Mas é inevitável, principalmente no fim da vida.

Já decorreram milhares de anos desde que começou a morrer gente e continuamos a saber muito pouco sobre este fenómeno. É como se fosse um departamento do conhecimento universal vedado ao Homem, um espaço de sabedoria sem janelas, um lugar de acesso altamente restrito.

Entender a morte parece-me, no entanto, mais simples que entender a vida, até porque é mais fácil falar daquilo que julgamos estar distante de nós. E tal como percebemos melhor o frio se experimentarmos o calor, talvez encontremos o sentido da vida se nos aproximarmos da morte.

Plagiando uma ilustre conhecida dos nossos tempos, "estar vivo é o contrário de estar morto". A vida deve ser, em teoria, tudo aquilo que a morte não é. Assume-se que a vida e a morte ocupam pólos opostos, entretanto, são as duas faces da mesma moeda.

Há pessoas que estão vivas mas não se nota nada. Outras, porém, que já morreram há muito mas ainda se fazem presentes.

Não sei o que é estar morto, logo, também não sei o que é estar vivo. Só sei que a vida se compõe por muitas mortes, como se todos os dias fossemos morrendo um pouco mais. Nascemos, crescemos, tornamo-nos autónomos e às tantas traçamos para nós um plano, uma rota, uma série de caminhos que queremos trilhar: ser saudável, estabilizar as contas, constituir família, envelhecer em paz, por aí fora. Mas não há caminhos sem obstáculos. Uns maiores que outros.

Viver é seguir caminho. A cada obstáculo deixamo-nos morrer. Vamo-nos aproximando gradativamente da morte final através de experiências menores de morte: quanto de nós morre quando parte algum dos nossos? Quanto vivos ficamos depois de um desastre amoroso? Quantas vezes morre uma mãe até que o filho se endireite?

Viver é seguir caminho, de novo. De cada vez que recuperamos de uma dificuldade, a vida continua. Mas entretanto a vida ficou adiada.

Gostaria de perceber qual é a utilidade da morte. De que me serve a finitude? Ter essa espada sempre por cima da cabeça cansa e não me traz qualquer vantagem. Pior: para que me serve ir morrendo aos poucos se posso fazê-lo de uma só vez?

Este procedimento padrão de morrer sempre que se vive é muito estranho. Faz-me pensar que se vamos morrer, então mais vale não me dar ao trabalho de viver. Mas aí começo a equacionar as desvantagens de morrer, que devem corresponder às vantagens de viver, e concluo que ainda não me apetece falecer.

Afirmar que os obstáculos fazem parte da vida parece-me poético. Os obstáculos fazem é parte da morte. Para viver temos que estar sempre a contornar, a enganar e a fugir à morte. Voltamos à vida tantas vezes quantas as vezes que morremos, e o mais certo é essa nova vida ser diferente da anterior.

Em função desta definição é provável que encontremos mais gente morta que viva, porque quase ninguém escapa aos obstáculos. Os conceitos de vida e de morte podem afinal não ser tão opostos quanto se julga. Estar vivo pode não ser o contrário de estar morto. Pode a morte ter sentido se não incidir sobre a vida? Então a vida só fará sentido se for vivida em função da morte, nos momentos em que nos autorizamos a escapar-lhe.

 

Joel Cunha

 

11
Out11

A chave (De volta à vida – 3)

Publicado por Mil Razões...

 

Luís já cumprira seis anos da pena a que fora condenado. Esteve todo aquele tempo no mesmo estabelecimento prisional, na mesma cela. Os seus companheiros de cela foram mudando. E houve mais mudanças, algumas que o Luís observou, outras, lá fora, que nem consegue imaginar. Ia ter agora a sua primeira saída, o seu primeiro fim de semana a tocar a liberdade, dois dias entre pessoas que não fazem parte do seu mundo atual.

Nos primeiros três meses de prisão recebeu algumas visitas, do irmão e de um amigo de infância. Subitamente, desapareceram e não teve mais notícias nem visitas. Revoltou-se, culpou-se, resignou-se e habituou-se ao seu novo mundo, um mundo diferente, um mundo bem pequeno, com poucas caras.

A reeducadora não conseguiu encontrar o irmão, único familiar que conseguia referenciar. Para sair, tinha de ter uma referência, tinha de ter onde ficar. Mas quem referenciar? Mas onde ficar? Nos últimos seis anos só tivera os seus companheiros de cárcere e o pessoal prisional, só conhecera aquela cama dura onde deixava o cansaço da longa espera e a angústia da vida interrompida. A sua solidão, o seu isolamento, o seu abandono, pareciam querer contrariar todo o esforço de bom comportamento. Mais uma vez a reeducadora deu uma ajuda e conseguiu uma vaga n’A União. Estava tudo combinado: o Luís ficaria num quarto durante a sua saída.

No Luís, a ansiedade e a confusão debatiam-se. Tudo lhe parecia novo. O sorriso do guarda, sair o portão, ter dinheiro no bolso, entrar num autocarro, dirigir-se a um destino, com um papel na mão com uma morada escrita. Os carros, como estavam diferentes... mais redondos, mais coloridos. E as pessoas… as roupas eram diferentes.

N’A União mostraram-lhe o quarto. Era simples, mas parecia-lhe cheio de coisas e de conforto. Luís estremeceu de surpresa quando lhe entregaram a chave do quarto. Há tanto tempo que não pegava uma chave… Procurou na memória um momento como aquele, em que guardava uma chave que era sua, na algibeira; já não consegui encontrar.

Luís tinha fome. Sentiu vontade de, ao fim de seis anos, comer sozinho, longe da presença de outras pessoas. Saiu à rua procurou uma loja onde pudesse comprar comida para levar para o quarto. Encontrou um supermercado e entrou. Espantou-se com cada expositor, com cada prateleira, demorou-se a contemplar e a analisar cada artigo. Encontrou coisas que já não recordava existirem, de que há muito deixara de necessitar. Ficou ansioso por ter de escolher, mas escolheu, com brilho nos olhos e alegria no coração por de novo poder fazer as pequenas e quase inocentes escolhas do dia a dia.

De regresso ao quarto, experimentou deliciado um jantar a sós consigo mesmo, escolhido por si. Esticou-se na cama, fechou os olhos e sorriu. Não lhe pesava o passado. Ainda não lhe pesava o futuro. Sentiu a chave cair-lhe do bolso, para o colchão e o baixo ruído metálico rodopiou na sua cabeça. Sorriu. Percebeu que voltava à vida. Como mais ninguém, naqueles momentos, compreendeu os sinais de vida que, subtis e despercebidos, há em cada gesto, em cada objeto. Pouco depois adormecia, embalado pelo calor das suas descobertas. Dormiu o sono dos justos.

 

Fernando Couto

 

07
Out11

E depois? (De volta à vida – 2)

Publicado por Mil Razões...

 

Como qualquer ser vivo, me intriga a morte. O que acontece depois? É verdade que voltamos, ou talvez não, se o nosso comportamento não estiver de acordo com o esperado? É verdade que voltamos na mesma família, com os mesmos amigos, até superar diferenças?

Não tenho a menor ideia do que acontece. Nunca tive nenhum tipo de experiência, dessas que a pessoa vê um túnel e sai em direção a ele.

O que me atormenta é o que dizem. Nós só levamos o que vivemos, mais nada. Não temos como levar nem um pouco do perfume que mais gostamos. Penso muito nisso, porque como muita gente estou despreparada. Já me falaram que rola um julgamento, onde não existe argumento, você é obrigado a assistir toda a tua vida e será julgado pelas coisas que não fez, não pelas que fez. Também me falaram que o filme da vida é dividido em duas partes. A primeira parte são as coisas ruins, pode levar eternidades para assistir e ver como você lidava com isso e a outra parte, muito rápida, são os momentos bons, felizes, plenos, essa parte dura segundos e isso determina que tanto você aprendeu na vida.

Me sinto despreparada porque não fiz até agora as coisas como deveriam ter sido feitas. Desde que nasci me perdi em problemas de peso, dietas malucas e ideias imbecis sobre o que é bonito ou não. Tenho doutorado nisso, em mutilação, tortura, fome, remédios para emagrecer e milhões de coisas picaretas. Sei tudo isso de cor, posso em segundos falar quantas calorias existem em milhões de coisas. Mas não vou levar o meu corpo ou seja, todo esse trabalho, toda essa dor, no fim não me servirá de nada. Trinta anos jogados no lixo e ainda desconfio que alguém lá em cima vai me dar uma bronca. E não sei se dá para juntar segundos de felicidade, para a segunda parte do filme. Isso também me atormenta. Sempre fui boa aluna aqui, não sei como será chegar lá e ficar ouvindo um monte. Minha única defesa é que eu não fui avisada. Ninguém me disse que os padrões estéticos do mundo não são reais, nem que a felicidade era uma coisa simples, nem que sentimentos ruins tem que ser domesticados, controlados e isolados, como doenças contagiosas.  Ninguém me avisou que eu poderia ser feliz sem muitas ambições, só seguindo o que eu quero, não o que me dizem para seguir. Ninguém me disse que minha vida ou a de qualquer um, poderia ser harmoniosa como a de uma borboleta, respeitando os ciclos e voando só por um motivo, não por milhões deles.

Espero ter tempo de reverter isso, mudar o filme, editar as partes ruins e colocar mais boas . Espero ter tempo de agradecer meu corpo por tudo de bom que ele fez e por todas as torturas que ele suportou em silêncio. Espero ter tempo, gostaria de chegar lá e saber que ninguém me avisou como era a vida aqui, mas ainda assim eu soube viver. Gostaria de pensar isso, talvez já morri um dia, mas agora estou de volta à vida.

 

Iara De Dupont (articulista convidada)

 

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