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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

10
Mai11

A casa grande (Idade Maior – 12)

Publicado por Mil Razões...

 

- Quem é aquele senhor que te trouxe à escola?

- É o meu avô.

- Ele traz-te todos os dias?

- Traz. Mas às vezes traz o meu pai. Noutros dias, a minha mãe. Mas é quase sempre o meu avô.

- E gostas de vir com o teu avô?

- Gosto. E gosto de ajudar o meu avô a fazer coisas em casa. Tu também ajudas o teu avô?

- Eu não tenho avô; só tenho avó.

- E ela traz-te à escola?

- Não. Ela agora vive numa casa grande, com muitos avós.

- E porque é que não vive contigo?

- Não sei. O meu pai disse que não podia tomar conta dela, a minha mãe abanou que sim com a cabeça e levaram-na para aquela casa grande.

- E nunca estás com ela?

- Só às vezes, quando vou lá.

- E quando vais, ela brinca contigo?

- Não. Está lá sentada a ver televisão, ou anda a passear.

- E tu não brincas com ela?

- Não, ela está sempre triste. E eu não gosto de lá ir. Os avós estão sempre tristes e cheira mal.

- Se levasses a tua avó para casa, achas que ela ficaria contente e brincaria contigo?

- Não sei. Mas o meu pai não deixa que ela vá.

- O teu pai não gosta da tua avó?

E ficaram em silêncio, à espera da professora.

 

Fernando Couto

 

22
Abr11

Continuo aqui (Idade Maior – 7)

Publicado por Mil Razões...

 

Senti o sol a incidir nos meus olhos. Abri-os a custo e fui imediatamente invadida por uma sensação familiar de bem-estar. Mais um dia começava e ali estava a vida a desafiar-me alegremente e com malícia, para me levantar e aproveitar cada minuto do novo dia. Era uma miúda com pressa de ir lá para fora, abrir as narinas e inspirar o ar todo de uma vez. Levantei-me enérgica, abri as janelas, saí do quarto, e ao passar no corredor, esbarrei com uma figura estranha e ao mesmo tempo familiar. Observei melhor aquela mulher septuagenária, de cabelos grisalhos, como um olhar tão parecido com o meu. Era o meu olhar. Era eu.

O espelho lembrava-me com cinismo que o tempo tinha passado por mim, deixando as suas marcas bem visíveis, vincadas no meu rosto. Fitei a figura reflectida no espelho durante ainda alguns instantes, para me inteirar de que era eu de facto que me observava e tocava as minhas rugas ao de leve. Que corpo era aquele? Aquele invólucro estava errado. Dentro dele, escondia-se uma miúda, com a vida a pulsar dentro dela.

Fiquei ainda algum tempo presa àquela imagem e a tentar reconhecer-me nela. Enquanto mergulhava no seu olhar fui-me lembrando de como a minha vida tinha sido preenchida. Vi o rosto do meu amor, do meu companheiro de tantos anos, que tinha partido antes de mim. Vi o rosto do meu filho muito amado e o riso solto dos meus netos. Vi as minhas viagens, aventuras, alegrias e tristezas, sucessos e fracassos. Vi-me a aproveitar cada momento da vida. Vi-me a envelhecer.

Sim, aquela imagem no espelho era eu e reconheci nela uma grandeza única, por todas as vidas que tinha vivido e partilhado. Mergulhar naquele olhar era penetrar num mundo privado e fascinante de memórias.

Sorri e reconheci o meu sorriso. Era o mesmo de sempre. A miúda estava ali, à espreita, a desafiar-me. Tanto ainda para viver, tantos livros para ler, tanto para escrever, tanto para partilhar.

 

Teresa Moura

(Articulista convidada)

 

19
Abr11

Ao Tempo o que é do Tempo (Idade Maior – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

O tempo rasteja, caminha, dança e voa, não necessariamente por esta ordem, num frenesim desenfreado e enigmático. Andei décadas “aos papéis”, a tentar adivinhar como e quando, e só agora percebo que ele passa, na velocidade certa, em todas as fases da nossa vida. Quando somos muito jovens, cada dia parece uma eternidade. A ansiedade em ser adulto é tão grande que às vezes nos consome. “Quero crescer. Quero crescer depressa.” E a vida faz-nos a vontade. Chegados a adultos, percebemos que tudo mudou: a nossa percepção do tempo, as expectativas, os sonhos que nos dilaceram, as dores que nos libertam. Tudo. Se tivermos sorte - eu tive - apaixonamo-nos por alguém que nos enche as medidas e nos devolve, numa simbiose perfeita, o sonho de uma vida em comum. Todavia, por mais que alguém se projecte no futuro, dificilmente consegue imaginar o seu aspecto, as suas vivências, na idade maior. Fiz esse “exercício” várias vezes mas, ainda agora, tenho dias em que acordo de manhã e me olho no espelho, e não reconheço aquela velhice na pele. Não sou eu ali reflectido, mas sim aquele rapaz de pouco mais de três décadas, tão vívido na minha memória, que vivia à boleia de um tempo que nunca foi seu.

A idade maior instalou-se, juro que não dei por nada. Equacionei tanta coisa para mim nesta etapa, menos estar só ou sentir-me, cada vez mais, frágil e assustado. Descobri, por exemplo, que não gosto dos dias negros e chuvosos. Quando acordo, abro a janela e a casa permanece na escuridão, vejo a morte na penumbra. Nesses malditos dias escuros, sinto-a junto a mim e morro de medo de que não seja apenas uma visita, e ela não queira regressar sozinha. Então, ainda que chova, faça frio ou me doam coisas no meu corpo que eu nem precisava de saber que existem, forço-me a sair de casa. Misturo-me com a multidão, esperando assim ludibriar a morte e prolongar a minha estadia. Não gosto da solidão, lido muito mal com a falta da minha “metade” de uma vida inteira mas, ainda assim, não me leves a mal, não tenho pressa em te seguir. Muitas vezes te chorei na praia, quando a saudade já não cabia dentro de mim. Gosto de chorar junto ao mar porque só aí as minhas lágrimas parecem pequenas… Mas hoje não quero chorar. Hoje o dia dói.

Hoje está um desses dias negros e pesados. Estou particularmente melancólico. Saí de casa e entrei num autocarro onde, abrigado da chuva, pude ver e ouvir gente. Ao meu lado, sentou-se uma jovem que me sorriu. Não sei por que razão lhe disse o que sentia… Talvez o sorriso dela tenha desvanecido a minha angústia reprimida, tornando-a tão leve que me saiu pela boca. Confessei-lhe, baixinho, que nestes dias sentia a morte presente e que ansiava pelo sol, para alumiar a escuridão. Ela olhou-me nos olhos e disse-me que a morte caminhava com todos nós: novos, menos novos, ricos e pobres, homens e mulheres, desde que nascíamos. E que nos levava, indiscriminadamente, quando nos saía o bilhete premiado. Não consegui deixar de sorrir e, quando me retribuiu o sorriso, senti que havia mais sol sobre mim.

Regressei a casa, ainda chovia. Assim que entrei, lá estava ela na penumbra. Não senti frio, não tive medo. Disse-lhe: “Ah velhaca, hoje não é o meu dia, não tenho o número premiado. Volta amanhã.”

 

Alexandra Vaz

 

15
Abr11

As árvores (Idade Maior – 5)

Publicado por Mil Razões...

 

“Olho para trás. Vejo-te tão nítida. Foste persistente em mim. Longa e tão curta. Pergunto-me até quando permanecerás. Deste-me o mundo outrora. Sou o mesmo sem o ser. Vivo-te de outra forma. Já não há a genica. Há o espírito somente.

Criei ramos a partir do meu tronco e ainda vejo pequenos rebentos, tão perfeitos. Esses jamais se recordarão de mim. Mas, levarei todos comigo. A morte esteve comigo algumas vezes, mas foi caridosa. Já tive mais medo. Penso que agora aprendi a aceitar o ciclo da vida. Provavelmente, um dia encontro-me com ela ao virar da esquina. Pode ainda demorar. Não sei. Vivo muito mais nas recordações. São como pequenos filmes que passam por mim. A vida é tão rápida, sinto-a rápida, mesmo que seja mais lento agora. Percebo melhor o agora. Percebo melhor a importância de cada um de nós e estou feliz por ser ainda importante na vida dos meus. Por ter saúde, o que tantos não têm. Cuidam de mim, embora às vezes me tratem como uma criança, que não sou. Já fui. Não tenho mais essa inocência. Talvez tenha um pouco da sua dependência, mas posso também ainda cuidar, contar histórias. Estou cheio delas. Os filhos já as sabem de cor, mas os netos ainda não se cansaram de escutar.

Tenho tanto dentro de mim. Cada ruga é um caminho percorrido. Já vi tantas transformações que deixei de dar as coisas como certas. Tudo se transforma. Sou como uma árvore que permanece. O seu tronco já não é liso e suave. É sabido. Tem gravações. Carrega ramos, folhas, frutos. Uma árvore é tão bonita, tão poderosa, tão essencial. E contudo, continuamos a admirar as flores, jovens e frescas. Não que não sejam importantes. Mas, tão frágeis. Tão vulneráveis. Mas tão desejadas. Ali ao lado, a árvore que nos dá sombra, nos ampara da chuva, que nos alimenta com os seus frutos, que abriga nos seus ramos, que nos permite ver mais além. Essa ali fica. Perene. E, às vezes tão invisível, como não deveria ser. Por vezes, olhada apenas como lenha para a fogueira. E não compreendemos a sua sabedoria. Felizmente, por vezes, admiramos as árvores também e ficamos fascinados do quão são resistentes, apesar de todas as invernias pelas quais já passaram.

Sou a árvore da minha família, mas toda ela ainda se reúne junte a mim. Não me olha com indiferença. Criei tantas raízes que, se a vida não for mais amanhã para mim, sinto que continuarei através dos meus ramos e das minhas folhas. E isso traz tanta paz. Sinto-me uma árvore velha, tranquila, com as folhas ao vento, enquanto admiro o pôr-do-sol.”

 

Cecília Pinto

 

12
Abr11

Solidão silenciosa (Idade Maior – 4)

Publicado por Mil Razões...

 

A actual crise política em Portugal domina as atenções nos nossos media. Há uma semana atrás, os protagonistas foram os desastres naturais no Japão, nomeadamente o terramoto e o maremoto que se lhe sucedeu. Duas semanas antes disso, era o denominado movimento de protesto Geração à Rasca quem ocupava o lugar de destaque nos nossos meios de Comunicação Social. E, há cerca de um mês, o país chocava-se com notícias sucessivas relatando as mortes silenciosas de vários idosos, esquecidos nas suas casas. Quantos terão morrido nas mesmas condições, desde essa altura, mas que não receberam as luzes dos holofotes do meadiatismo? Alguns? Muitos? Mesmo traçando-se o cenário mais optimista possível, certamente que terão sido demasiados, pois ninguém deveria ter que morrer sozinho, abandonado e esquecido.

 

A nossa sociedade idolatra os jovens e venera os anos gloriosos do período da juventude. As pessoas recordam, com nostalgia, as doces memórias dos seus tempos de criança e de adolescente e, com a mesma intensidade, recusam pensar no seu futuro enquanto pessoas velhas que virão a ser. Na rua, quando os nossos olhos se cruzam com o olhar de um antigo, sequioso de atenção e de alguém que lhe retribua um sorriso disfarçado, por entre os vidros de uma janela empoeirada, quase que, involuntariamente, a nossa atenção se desvia para o lado contrário. Porque é triste sentir que aquela pessoa está só e sofre em silêncio. Porque sentimos a nossa quota-parte de responsabilidade de sermos cúmplices de uma sociedade que negligencia os seus anciãos. Porque, talvez, inconscientemente, tememos vir a ser aquela pessoa que, na recta final da sua vida, se vê, quanto muito, tolerado pela família, desprezado pelos jovens e abandonado pela comunidade.

 

A solidão dos velhos é pobre, cruel, silenciosa e confinada às quatro paredes de uma casa. A sua voz rouca de protesto não se consegue fazer ouvir e o seu corpo, cansado das amarguras da vida, teima em aprisioná-lo a um espaço exíguo que pouca gente visita.

Enquanto não chega o dia em que nos orgulharemos das notícias sobre o lugar dos nossos idosos na sociedade, porque não aproveitar o presente tempo de crise para reflectirmos, enquanto filhos, enquanto netos, enquanto cidadãos, sobre a dívida que temos para com os nossos velhos e de que forma poderemos tentar, pelo menos em parte, saldá-la? Porque, querendo-se ou não, os jovens de hoje serão os velhos de amanhã. E amanhã poderá ser já tarde, já poucos nos ouvirão porque já não seremos jovens....

 

Liliana Jesus

 

08
Abr11

Velhos são os trapos (Idade Maior – 3)

Publicado por Mil Razões...

 

Se o jovem soubesse e o velho pudesse não haveria nada que não se fizesse. Este antigo provérbio verte de forma grosseira os limites de velocidade a que a evolução da humanidade está condenada. Há algo de profundamente errado com esta organização social, um colossal desperdício de energias desorientadas e de saberes feitos de experiência.

A culpa primária pode residir na genética, até porque ela é a principal responsável pela curva do crescimento e envelhecimento. Mas isto não retira responsabilidades a todo um conjunto de vontades de manter os jovens na ignorância e os velhos na prateleira. São muito restritos os círculos onde se faz com relativo sucesso o cruzamento entre sabedoria e força. E a escola tem tido algumas dificuldades em manter-se nesse meio. Uma verdadeira e honesta aliança entre a pujança da juventude e a experiência da velhice não se faz apenas da expedição de matérias escolares. Faz-se antes de uma colaboração estreita, prática e funcional entre elas, à semelhança de uma tutoria ou, quando devidamente estruturada, de uma família. Numa sociedade de economia simples, como é o caso da civilização Arapeshe da Nova Guiné, os jovens vão participando progressivamente nas actividades dos mais velhos: começam por cultivar o jardim dos pais ou dos avós e, mais tarde, o seu próprio jardim. Assim, a transição da criança para a vida adulta faz-se lenta e gradativamente, não havendo grande espaço para que se manifestem as crises a que as sociedades ocidentais modernas apelidam bondosamente de típicas ou normais na adolescência.

Como pode uma vida inteira de conhecimento e experiência ser encostada num canto da casa ou acondicionada num lar? Que terra é esta que remete os velhos para um lugar de esquecimento? Não é de estranhar, então, que a doença de maior incidência na terceira idade seja a solidão. E de quanta injustiça se reveste esta situação!

Compreender o fenómeno que nos leva a atirar a velhice para uma ilha, remete-nos para explicações complexas que passam, nomeadamente, pelas teorias psicanalíticas de evitação de medos e de perpetuação das características com as quais nos identificamos. Mas outra explicação concorre, provavelmente com vantagem sobre as demais, para o entendimento do enigma: trata-se da questão económica e de tudo o que gravita à volta dela. Quanto custa aproveitar a sabedoria feita de idade? Qual é o preço justo a pagar por tão precioso legado? Já alguém fez bem as contas?

Este é um dos maiores paradoxos das sociedades ditas civilizadas: há, por um lado, mão-de-obra válida e disponível para ensinar, orientar e comandar, cérebros calejados a rodos, ávidos por se deixarem aproveitar nesse sentido e, por outro, toda uma juventude a precisar de ensinamentos, orientações e comandos, matéria-prima imberbe aos montes, à procura de quem a trabalhe.

Velhos são os trapos! A eterna juventude é para esquecer, mas há claramente neste adágio, neste grito de revolta, um manifesto contra a resignação. A juventude tal como a velhice, são além de conceitos associados à passagem do tempo, estados de alma. Nesta perspectiva cabe um pouco de tudo: desde velhos aos quarenta, a adolescentes aos trinta. Mas há toda uma massa de gente que só parou por força da estruturação laboral, da vontade de outros e que, por mais que queira, não encontra forma de exercer o seu direito de juventude.

Os velhos deste país estão injustamente esquecidos. Os programas para a idosos vão mais no sentido de os entreter do que de lhes aproveitar o talento.

Ser ou não ser velho não é tanto uma questão - é uma indecisão, uma extraordinária indecisão de todos nós.

 

Joel Cunha

 

03
Dez10

Usurpação (Depois da tentativa – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

Nunca senti medo de envelhecer estando contigo. Casámos em segundas núpcias, com meio século de vida. Tu tinhas estado casada, há muitos anos atrás, com um homem que te abandonou, sem uma palavra, poucas semanas depois do vosso matrimónio. Eu tinha vivido tranquilamente, quase duas décadas, com a mãe do meu único filho, mas a morte reclamou-a cedo demais. Temos sido felizes, eu e tu. Tomas conta de mim e, nessa dádiva, fazes-me sentir importante e amado. És uma força da natureza! Não paras por um instante, levas o mundo à tua frente, com força e amor.

 

Já temos mais de setenta anos. Estou quase surdo. Vivo com um cancro na próstata há mais de dez anos, que parece coabitar no meu corpo, sem pressa de me levar. Tu começaste a cair em todo o lado, sem razão aparente. Corremos médicos, ouvimos opiniões e diferentes diagnósticos. Vi-te piorar de dia para dia, assustada, e eu incapaz de te sossegar… Não me lembro que nome esquisito o especialista proferiu mas, trocando-o por miúdos, disse que tinhas a doença do neurónio motor. Lembro-me de ter pensado que não devia ser assim tão grave. Afinal, se temos milhões de neurónios, que mal poderia causar apenas um? Lenta e gradualmente, deixaste de andar, de falar, de mexer parte do teu corpo. Lá em casa, deixamos de poder atender o telefone: eu não o ouvia e tu já quase não falavas… O meu filho, que sempre me excluiu da sua vida, aproximou-se novamente. Fiquei feliz, sabes? Durante anos, supliquei tanto para poder vê-lo e às minhas netas e agora, achei que em face do que atravessamos, ele tivesse mudado. Acreditei que neste momento, particularmente difícil, a família unir-se-ia. E eu precisava tanto, tanto de apoio…. À medida que pioraste, fui percebendo que não tinha força para cuidar de ti. O meu filho e a minha nora sugeriram um Lar… um sítio onde fosses bem cuidada e eu pudesse estar ao teu lado. Não aceitei a ideia com facilidade. Não queria sair da nossa casa, não queria que te sentisses perdida e usurpada… O meu filho libertou-me do peso de algumas decisões; assumiu-as e fez tudo o que podia: pediu-me que assinasse alguns papéis que o tornassem meu representante, para eu poder estar contigo sempre que possível. Visitamos alguns lares, não gostei de nada do que vi: desumanos, caríssimos, destituídos de carinho e dignidade. Não te queria num sítio assim…. Depois de uma busca incessante, e por sugestão da minha nora, fomos para Gaia. Segundo ela, não havia melhor do que aquilo. Pediram-nos tanto dinheiro…. Felizmente, fomos poupados e tínhamo-lo.

 

Disse ao meu filho que ia manter a nossa casa. Que me saberia bem ir lá com frequência, cuidar do jardim, cheirar as nossas coisas…. E que, se não te desses bem no lar, te trazia para casa novamente e arranjava apoio domiciliário. Mereces o melhor. Fizemos a mudança. Instalamo-nos no lar, nós e o inferno…. Não pudemos ficar juntos. Adormecemos e acordamos juntos durante mais de vinte anos, mas ali fomos impedidos de o fazer… Custou-me tanto e sei que a ti também… Tentei arduamente adaptar-me mas cada dia que passava era pior do que o anterior. Tu choravas angustiada, detestavas aquilo. Entrei em colapso….Tomei a decisão de voltar para casa. Afinal, ainda tínhamos dinheiro suficiente para eu poder cuidar de nós, com ajuda. Para te poder devolver a dignidade que merecias até ao fim da tua vida. Pedi ao meu filho os papéis das nossas contas bancárias, os documentos e tudo que ele havia guardado. Ele evitava atender o telefone, recusava-se a estar comigo. Ficou muito chateado quando lhe comuniquei a nossa decisão de sair do lar… Fui ao banco. Não temos um cêntimo…. A minha nora encarregou-se de deixar as contas a zero, “para ajudar os velhinhos” que nunca viram esse dinheiro… Fui a nossa casa, está vazia…. Segundo os vizinhos, no mesmo dia em que nos deixaram no lar, o meu filho, a sua mulher e as suas filhas, esvaziaram-nos a casa, levando tudo o que lhes interessou. Não temos nada, mulher, nada. Tantas vezes me avisaste. Tantas vezes me pediste que tivesse cuidado, que resguardasse o meu coração, porque o meu filho e a minha nora me iriam magoar sempre que eu deixasse…. Sabes o que me custa mais? Ter deixado que te magoassem a ti também.

 

Estive contigo ainda há pouco. Já não dizes nada, já mal te mexes. A mobilidade que ainda te resta de um braço, permite-te – tentar -  escrever, devagarinho… Disse-me o médico que vais perder o controlo completo do teu corpo, até ficares presa, absolutamente consciente, dentro desse corpo que não te obedece, até ao fim… Não fui capaz de te dizer que não tínhamos um cêntimo nem em que estado estava a nossa casa… não fui capaz de te dizer que sempre tiveste razão… que me amaste de uma forma pura e humana e eu retribuí, falhando contigo tremendamente… Dei-te um beijo e deixei-te a dormir. Andei desnorteado pelas ruas, dei por mim aqui, nesta ponte nova, mais uma que une Gaia ao Porto. Sinto-me um farrapo humano… Já nada me resta e não suporto a ideia de te perder também. Perdoa-me por não ter sido capaz de cuidar de ti como cuidaste de mim, até a saúde te faltar… Brevemente, estaremos juntos, num lugar onde te verei apenas sorrir e ser feliz. Sem dor, sem doença. Espero lá por ti, sou demasiado cobarde para ser o último a partir. Por isso agora, sucumbo. Vou mergulhar no Douro e deixar que a água me leve e lave todos os meus pecados…

 

Alexandra Vaz

 

13
Out09

Brilhozinho nos olhos (Incapacidades – 5)

Publicado por Mil Razões...

 

 
A velhice, sendo o período da vida no curso do qual algumas funções diminuem progressivamente, é um acontecimento incerto, porque não se sabe se a pessoa viverá até ficar velha.
 
Simone de Beauvoir fala da velhice como um conceito abstracto, uma categoria socialmente construída que serve para referir o período de vida em que as pessoas ficam velhas. Enquanto estereotipo facilmente reconhecível, enquadra uma categoria de indivíduos cujas características relativamente homogéneas, são normalmente identificadas com o isolamento, solidão, doença, pobreza e mesmo exclusão social. Contudo, ao atingir a fase final do ciclo de vida, o que a maioria de nós espera é envelhecer com segurança, dignidade e que continue a participar na vida em sociedade e exercendo os seus direitos.
Apesar disso, podemos verificar que estas pessoas dispõem hoje de maiores possibilidades de sobrevivência, têm mais saúde, mais meios económicos, culturais e sociais, maior difusão de infra-estruturas de apoio médico e maior diversidade de terapêuticas. Como consequência, gozam de mais anos para viver. São portadores, também, de um capital de informação incomparável que, se o valorizarmos, terá maior impacto nas gerações mais jovens.
Mas o que é então ser velho nas sociedades modernas? A velhice como categoria social pode dizer-se que ficou institucionalmente fechada nas fronteiras de um limiar de idade fixo, cujo acesso é reforçado pela detenção de uma pensão de reforma. Sendo esta – a reforma – também uma forma de exclusão social quando atribui o estatuto desvalorizado de “reformado”.
 
Dizem que ser velho é ser lento, sem memória para as coisas do dia-a-dia, refilão, triste, aborrecido, enfim… um chato! Mas… não! Ser velho, apesar de ser idoso e ter saber de viver, é chegar onde, provavelmente, muitos nunca chegam.
Ser velho é ser solidário com os mais novos, ter mais paciência para as crianças, é ser feliz por pertencer aos filhos, aos netos, aos outros, é ter a idade da inocência, do saber das histórias, aquelas que a vida ensinou, é ter a sabedoria de todos os almanaques do mundo.
Ser velho é ser maior, é ser amigo, é ter um brilhozinho nos olhos por ver os outros felizes e dizer que ama mesmo sem receber nada em troca.      
Ser velho é uma meta para todos nós, mas nem todos lá vamos chegar.
Que pena não ter a certeza de um dia ser velha!!
 

Ana Santos

 

07
Mar09

Sei o que tenho a fazer (A Solidão do Doente)

Publicado por Mil Razões...

 

Naquela tarde, depois de mais um dia de trabalho, subo a rua em direcção ao autocarro que há-de levar-me a casa. É tarde. Está muito movimento e a minha preocupação é andar depressa para não atrasar o jantar. Cruzo-me com as pessoas sem reparar nelas. Não teria chamado a minha atenção se não fosse a sua figura frágil e o seu andar cambaleante; alguma coisa estava errada com aquele homem que há muito passou pela juventude. Olho para trás na tentativa de perceber. Lá estava ele, agora sentado no degrau de um edifício.
Não sem algum desagrado pelo contratempo, mas a sentir que deveria fazer alguma coisa, volto para trás e dirijo-me a ele perguntando se se sentia bem.
Não, não sentia.
Tinha saído de casa pela manhã e a pé, tinha ido até ao Instituto de Oncologia fazer o tratamento. Agora estava de regresso a casa, novamente a pé. Como não tinha comido estava muito fraco. Quis dar-lhe algum dinheiro e uma senha para ir de autocarro.
Não aceitou. Teria muita vergonha se aceitasse.
Desde que a mulher morreu que vive sozinho, esconde as dificuldades dos vizinhos, porque, segundo ele, tem muita dignidade. Reparo que, apesar de cansado e frágil, tem ar muito asseado.
Insisto para que aceite a senha de autocarro. Perante a recusa despeço-me e retomo o meu caminho. Pareceu-me que tentei fazer o que podia. Não entendia pois aquele mal-estar que me intranquilizava.
Nos dias seguintes pensei muito naquele homem. Disse a mim mesma que se nos voltássemos a cruzar, iria conseguir que ele aceitasse a minha ajuda.
Passaram uns meses. Uma tarde, com uma terrível dor de cabeça, saio mais cedo do emprego para ir descansar. A enxaqueca estava a consumir-me e só pensava em chegar a casa para me deitar.
Eis que de novo e no mesmo sítio me cruzo com ele. Estava mais frágil e ainda mais cansado. Tão cansado que não se fez rogado e aceitou a ajuda monetária, desta vez para ir de táxi porque o seu estado, já no limite das forças, não lhe permitia ir até ao autocarro. Agarrou-me as mãos e beijou-as. A situação era-me desconfortável e afastei-as devagarinho. Voltou a abordar a perda da mulher e o facto de morar sozinho. Interrompi-o dizendo que já me tinha falado disso. A minha cabeça continuava a doer e parecia rebentar a qualquer momento.
O homem, sentado no degrau, tentava levantar-se sem qualquer êxito. Do nariz, um leve fio de sangue denunciava mais um tratamento em Oncologia. Uma vendedeira de rua que entretanto se aproximou, ofereceu-se para o levar a casa. Tanto melhor, poderia comer uma boa refeição com o dinheiro que lhe dei para o táxi.
Ainda olho para trás a tempo de vê-la a ajudá-lo a entrar para o seu furgão. Experimentei uma sensação de alívio. Resolvi um problema àquele homem. Pontual, mas resolvi. Esta sensação foi muito curta porque aquela pessoa não me saía do pensamento. Novamente aquele mal-estar. Aquela mesma intranquilidade.
Hoje, e porque não há duas sem três, espero ter a sorte de me cruzar novamente com ele. Desta vez sei o que tenho a fazer.
Querido amigo, vou dar-lhe tempo. Vou deixar o jantar para mais tarde, aguentar qualquer dor de cabeça, sentar-me consigo no degrau do edifício, dar-lhe as mãos e vai poder falar-me de como é viver sem a sua companheira de tantos anos, de como é difícil enfrentar uma doença e os tratamentos violentos a que é submetido. Vai poder falar-me da sua solidão, dos seus medos… Vai poder falar-me do que entender…
Eu vou escutá-lo!
 
Cidália Carvalho
(Imagem: Cabeça de Velho, de Candido Portinari)
 

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