Elaborar um Testamento Vital, ou não assumir qualquer compromisso em relação a um eventual tratamento futuro?
Em primeiro lugar, ninguém está obrigado a fazer uma Directiva Antecipada. E se acha que é daquelas pessoas que prefere deixar tudo entregue à “sorte”, ou que gostaria sempre de usufruir de todas as vantagens e não ser obrigado a abdicar de nada, é capaz de ser melhor não fazer uma Directiva. Tenha em atenção, porém, que o mais provável é, um dia, alguém ter de fazer essas opções por si, que não se quis pronunciar antecipadamente sobre elas, nem que fosse apenas pela designação de um/a Procurador/a de cuidados de saúde. Nessa altura, a não ser que a dita “sorte” o proteja muito, pode ter alguém a impor-lhe tratamentos a que, se pudesse falar nessa altura, não gostaria de estar sujeito.
David Barnard, professor de medicina e direito, em Living with Doubt (cf. Barnard, 2010: 27-28), ajuda-nos a reflectir melhor sobre o assunto.
Suponhamos, começa ele por nos dizer, que você se encontra num estado semi-comatoso numa Unidade de Cuidados intensivos, “ligado a um ventilador, seis dias depois de um AVC moderado”. Antes disso, a sua situação de saúde já não era boa, com deficiências físicas por causa de diabetes, e tinha de se submeter a diálise três dias por semana. Com a passagem dos dias, os médicos mostram-se cada vez mais pessimistas quanto às possibilidades de ser possível você recuperar algumas funções cognitivas e físicas. Imaginemos agora — e aqui começa a parte mais interessante do comentário de Barnard — que, por um passe de mágica, era possível você recuperar de repente todas as capacidades mentais e falar sem problemas com a sua família e médicos sobre a situação em que se encontra. Nessa altura, perguntam-lhe se, perante as perspectivas pessimistas, quer que se continuem a desenvolver todos os esforços para o manter em vida, ou se prefere que o deixem morrer com todo o conforto possível, ou seja, sem dores ou sensação de asfixia, desligando o ventilador e não lhe fazendo mais tratamentos de diálise. O que responderia?
Neste momento da narrativa, David Barnard toma o lugar dessa pessoa desconhecida: se essa pessoa fosse ele, diz, as primeiras palavras que lhe ocorreriam estariam longe de corresponder a uma decisão. Muito provavelmente, seriam algo do género: “Hmmm. Depende. Podemos discutir isso por uns momentos?”. Mais ainda: “se você fosse como eu, pesando os pormenores e incertezas quanto ao seu futuro pós-AVC frente aos seus desejos simultâneos (e, por vezes, mutuamente exclusivos) de gozar a vida tanto quanto possível e de morrer com o menor tormento, ou a menor sensação de desamparo prolongado, no final ainda não estaria completamente seguro da sua preferência. O que quer que fosse que decidisse, provavelmente teria profundas dúvidas sobre se o que tinha escolhido era de facto o melhor para si”.
O que Barnard quer salientar com este caso é que, por vezes, mesmo podendo falar na altura dos acontecimentos, nem o próprio sabe o que seria melhor para ele, quanto mais uma Directiva Antecipada redigida no meio de grandes ambivalências, ou um/a Procurador/a de cuidados de saúde. Portanto, o que Barnard incentiva não é a criar condições para uma decisão, mas para conversas em que a pessoa vá falando dos seus desejos em relação a cuidados de saúde, posição que se pode facilmente criticar. De facto, o que se pretende actualmente é que essas decisões tomadas numa Directiva sejam já o reflexo de conversas que as pessoas vão tendo com familiares, pessoas amigas e pessoal de saúde, e que não surjam numa manhã cinzenta de amargura.
Mas David Barnard insiste: nenhuma Directiva poderá alguma vez sossegar-nos em relação ao nosso bom procedimento quanto a tê-la seguido ou quanto a termos falado adequadamente em nome do/a nosso/a amigo/a como seu/sua Procurador/a. Porquê? Fundamentalmente porque David Barnard parte aqui de uma posição que creio podermos caracterizar como sendo acima de tudo filosófica, mas só no final do texto nos possibilita acedermos a ela, quando nos confronta com extractos da última parte do livro de Simone de Beauvoir sobre a morte da sua própria mãe: “Sim, todos os homens são mortais: mas, para cada um deles, a sua própria morte é um acidente e, mesmo se a conhece e aceita, uma violência ilegítima” (Beauvoir, 2008: 125, segundo a tradução portuguesa; de notar que no artigo americano nos aparece violation e não violence). Por isso, Barnard já dissera considerar haver um abismo irredutível entre a “clausura artificial” de uma Directiva Antecipada e o momento aberto e ambivalente do encontro com a própria morte. De facto, se se parte do princípio de que a morte é sempre uma violência (ou violação?...) injustificável, como é que nós, os que continuamos vivos, havemos de ficar, como escreve Barnard, “inteiramente livres de dúvida e culpa”?
Aliás, se nos desprendermos do artigo americano e recuarmos um pouco no livro de Simone de Beauvoir, encontramos o seguinte: “Quando alguém que nos é querido desaparece, pagamos com mil remorsos dilacerantes o sentimento de culpa por lhe sobrevivermos” (ibid.: 112). Mais: a sensação de que a morte constitui uma violação injusta encontra-se presente na própria epígrafe de Dylan Thomas que abre o livro de Beauvoir: Do not go gentle into that good night. / Old age should rave and burn at close of day; / Rage, rage against the dying of the light... (“Não entres docilmente nessa noite fria. / A velhice deveria arder de raiva ao anoitecer; / Revolta-te, revolta-te contra a escuridão”; cf. Beauvoir, 2008).
Perante estas considerações do autor, resta-me uma última conclusão: se, mesmo com uma Directiva Antecipada bem reflectida e elaborada, mais a designação de um/a Procurador/a de cuidados de saúde, nós, os decisores, poderemos ficar ainda com sensações de dúvida e culpa em relação àquela pessoa inconsciente cujas vontades tentámos seguir o melhor possível, atendendo às informações que nos deixou e às conversas que teve connosco, pior ainda se ela não nos tiver deixado nenhum fio condutor que nos ajude a interpretar as suas vontades. Mesmo que, afinal, também estejamos convencidos de que a morte é sempre, no fundo, uma violação, profanação ou violência injustificáveis.
BARNARD, David (2010). Living with Doubt. American Journal of Bioethics, 10 (4), 27-28.
BEAUVOIR, Simone de (2008). Uma morte Suave. Trad. de Bénédicte Houart, Lisboa: Cotovia.
Laura Ferreira dos Santos
(Articulista convidada)
Universidade do Minho e Comissão de Ética para a Saúde da ARSN; autora de “Testamento Vital. O que é? Como elaborá-lo?” Lisboa: Sextante, Janeiro 2011.