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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

09
Abr10

Fabricações Mentais (Vida em Sociedade – 11)

Publicado por Mil Razões...

 

Colocarei o problema de forma simples.

Todos sabem como é fácil e como é difícil viver em sociedade. Todos sabem, ou calculam, como é fácil e como é difícil viver só.

É fácil viver só porque nos teremos libertado dos inúmeros problemas que a convivência nos traz, inevitavelmente.

E é difícil viver só, porque não sabemos viver uns sem os outros (direi, sabiamente à maneira de M. de la Palisse).

Viver em sociedade é fácil - parece que é naturalmente que dependemos uns dos outros no aspecto afectivo e no material. E é difícil pelo mesmo motivo – dependemos uns dos outros se bem que não saibamos viver uns com os outros.

Se fôssemos todos iguais, é provável que não houvesse problemas de coexistência, mas somos tão diferentes que complicamos o nosso relacionamento com dificuldades que muito presumivelmente não merecem que nos ocupemos delas nem que nos preocupemos com elas. Só porque somos diferentes. E porque não aceitamos as diferenças como outras tantas possibilidades, faculdades, poderes.

Gostamos de gozar a nossa liberdade e não queremos saber de fronteiras. Mas não há forma de vivermos uns com os outros em paz e sem fronteiras que limitem a liberdade de cada um. Inventaram-se as regras e as leis para isso que por vezes é penoso – para que não colidamos. Todavia podemos e devemos interagir, nós que habitamos todos o mesmo sítio do universo por muito que o sítio se movimente em rotação e em translação num espaço infinito. E ainda temos desejo de conhecer outros sítios e conviver com habitantes de lugares, para já, desconhecidos.

 

Como proceder então sem conflito?

Considero que no meu mundo há aqueles com quem convivo e que não quero que sejam estrangeiros (a quem tenderei a culpar de todas as faltas), quero conhecê-los bem; e há todos os outros que também são meus vizinhos; há o que acontece à minha volta (e desejo interpretar correctamente); e há o desejo de ausência de sofrimento em mim (o que me permitirá ver com clareza e ajudar os outros a ver). Esquecer-me-ei um pouco de mim própria, bastante, mas aumentarei a minha capacidade de ver mais além e, do mesmo passo, ampliarei o seu, deles, e meu bem-estar.

 

“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, disse Jesus.

Ensinou pelo exemplo – amorosamente. A sua vida foi coerente com a doutrina que pregou, baseada em mandamentos divinos. A transcendência, acentuaram-na os discípulos.

 

Ouso considerar que a filosofia budista tem um sentido mais prático, mais dia-a-dia e talvez mais possível de conciliar com… Ou melhor usa uma linguagem e um método fácil de adoptar na vida de hoje. (Que me perdoem os seguidores, se não é assim). Um método acessível, digo. Mas, na verdade, há um longo caminho espiritual a percorrer.

 

É uma arte de viver aqui agora e pode ajudar-nos nisto que é fundamental para a nossa existência colectiva: sentirmo-nos bem a interagir com o mundo sob poucas regras e barreiras. Bastante próximos. A sentirmo-nos bem e solidários e interessados no que acontece à nossa roda e mais além.

 

Em face da realidade que temos, precisamos de mudar, sem dúvida. Mudar a visão do mundo, a maneira de estar, a maneira de pensar. Mudaremos primeiramente o jeito de pensar. Compreenderemos o que se passa connosco. Por que agimos de modo egoísta. E por que razão, isso, nos faz sofrer.

Descobriremos as causas do nosso sofrimento e do dos outros e tentaremos suprimi-lo. Dado que a ignorância das razões do sofrimento dos outros nos leva a distorcer a realidade e, ao contrário, o conhecimento das causas nos leva a uma consciência clara do que se passa… interessa-nos saber e fazer uma apreciação justa da realidade.

 

Começo por me interrogar se é a nossa natureza sermos egoístas. Se é a educação que nos leva a querer ser de outro modo e por isso sofremos. Sentimo-nos bem quando praticamos o bem. E sentimo-nos mal quando fazemos sofrer e quando vemos sofrer, é certo.

 

E acontece termos necessidade de ser altruístas por muitas razões inclusivamente económicas. Por outro lado, sabemos ser possível modificar a nossa forma de pensar, treinando a mente. Esse treino pode levar a uma alteração de funcionamento do cérebro, dizem os sábios.

 

Num momento extraordinário como o recente enorme desastre na ilha da Madeira, toda a gente se solidariza e contribui e trabalha para minimizar o sofrimento dos atingidos. As barreiras são abatidas e todos procedem de forma altruísta.

Sabemos que não é uma posição rotineira, comum.

Pensamos então que, se é possível em certas circunstâncias modificar a postura habitual, egoísta, por que não ser generoso mesmo fora de um contexto de cataclismo? É necessário transformar a nossa relação com o sofrimento, nosso e alheio, quero dizer, sermos naturalmente generosos e solidários e empenhados.

 

Uma forma de conseguir a mudança na nossa maneira de pensar é pela meditação tal como a entende a filosofia budista e de que tenho falado com frequência no meu blogue, O fio de Ariadne.

 

Meditar visa substituir a “urgência mental” em que quase sempre nos encontramos por uma paz profunda. E essa paz, que é nossa, tende a expandir-se e a tomar todo o espaço à nossa volta. E a ser passada a outras pessoas, criando um clima propício à clara compreensão dos problemas. Importa-nos esse estado de espírito, sereno, que nos levará à consciência e ao conhecimento.

 

Uma meditação de alguns minutos é a pausa que permite quebrar a cadeia dos pensamentos que provocam agitação interior e se encadeiam uns nos outros sem fim. Naturalmente, sentimo-nos mais livres e abertos nesses momentos. Com certeza, sentimo-nos em paz. E generosos.

A nossa maneira habitual de pensar é transformada, porque do emaranhado confuso que eram os nossos pensamentos antes de os disciplinarmos pela meditação, sentimos essa tentativa de silêncio como uma pacificação. Possivelmente de pronto voltamos à agitação.

 

Contudo, ficámos a saber o que é a paz e a calma interior a que aspiramos; e que nos é possível alcançá-la já que conhecemos as circunstâncias que a provocam. Talvez compreendamos a “verdadeira natureza das coisas”, isto é, o que elas são antes que as “nossas fabricações mentais” se sobreponham e as modifiquem.

 

A importância de disciplinar ou de ordenar os pensamentos, ou antes, a sua escolha (o que mais me seduz) é que, possibilitando que uns me ocupem e eliminando outros, deixo espaço na mente para desenvolver e elaborar ideias curiosas, permitir que elas me conquistem - deixo-me conquistar por elas, e trabalhar (com elas) no sentido da invenção, da descoberta, da realização da obra.

 

O meu desejo é não me deixar dominar por pensamentos que embaraçam a minha vida de forma escusada e inútil. Que se encaracolam e se colam a mim. Esses indesejáveis… devo exclui-los, se aspiro a um conforto. E fico, não apática, mas com espaço que preencho rapidamente com ideias que desejo construtivas se pretendo realizar alguma coisa que tenha importância para a minha vida, e para a vida.

Têm como referência, em geral, análises excessivas de palavras, de gestos, de entonações de outras vozes que quero a todo o custo interpretar à minha maneira. Mas, ao querer decifrá-los, estou muito provavelmente a culpar outros das minhas falhas, e logo sou levada por essa análise equivocada para situações de relacionamento muito delicadas e mesmo dramáticas, sempre infelizes. Para situações de conflito que levam a agressividade e a violência. Que noutra dimensão conduzem à guerra.

Porque as acções que empreendo, sejam quais forem, resultam dos meus pensamentos. E são proveitosas ou nocivas de acordo com esses pensamentos e com o ambiente, tranquilo ou agitado, em que nasceram.

O que significa que a importância de um acontecimento depende da minha atitude perante ele, não tanto do acontecimento em si. É possível que reaja de forma emocional, num primeiro momento mas, se em seguida for capaz de julgar tranquilamente, esmiuçando e diferenciando, encontrarei o ponto de clareza que me vai permitir actuar de forma justa. De maneira nenhuma, ficarei indiferente.

 

Afirmo de novo que a meditação me permite divisar que ideias… arriscarei excluir do meu espírito e as que devo acarinhar. Serenamente.

Continuo sem saber se somos naturalmente egoístas ou naturalmente altruístas – isso deixou de ser importante desde que acredito que é possível alterar a estrutura de pensamento.

Cultivar e desenvolver qualidades que permitam construir uma sociedade menos conflituosa, mais afectuosa, mais culta é realizável.

 

Direi que da abordagem… não ingénua mas confiante, aberta e generosa da humanidade, da realidade, da natureza das coisas… a uma sociedade menos conflituosa, é um passo de lógica ariadneana.

 

Não estou a falar de um sonho com que se ocupam meia dúzia de pessoas de boa vontade, desejosas de perceber e de melhorar o mundo. Sinto que vale a pena e é urgente estudar este pensamento e experimentar as práticas aconselhadas.

 

Zilda Cardoso

(escritora, convidada do MiL RAZõES...)

 

06
Abr10

Procurar a liberdade (Vida em Sociedade – 10)

Publicado por Mil Razões...
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Aos dez anos já Eduardo sabia o que queria ser quando fosse grande. Queria ser médico e a sua escolha estava fundamentada. O médico, por um lado tinha um conhecimento vasto e científico, o que o atraía e fascinava, e por outro lado utilizava o seu conhecimento para ajudar pessoas, para salvar vidas, o que lhe dava a perspectiva de plena satisfação pessoal.

Aos onze anos já Eduardo entendera que ser médico significaria ser escravo da sua profissão, pois não seria capaz de se negar a ninguém que dele necessitasse. Escolheu então um outro caminho: ser engenheiro. Esperou que tivesse um nível equivalente de conhecimento científico. Já sabia que não teria o envolvimento humano do médico, não ajudaria directamente ninguém, não salvaria vidas. Mas poderia ter uma vida mais sua, mais livre.

E como seria se não conseguisse? E se os seus pais não tivessem como pagar-lhe o curso? Que escolhas lhe restariam?

Conseguiu. E começou a trabalhar. Ao fim de alguns anos tinha já um bom estatuto, com um bom rendimento.

 

Aos trinta e poucos anos começou a sentir a falta do lado humano, de mexer com pessoas, de tentar minorar sofrimentos. Desejou aprender coisas novas, criar, inovar, mas para aliviar as angústias e os medos dos outros.

Com mais alguns anos vividos entendeu que as pessoas eram a matéria que queria, de facto, trabalhar. Porque não percebeu isso mais cedo? Há um tempo para tudo e tudo necessita de ser amadurecido. Queria abandonar os números, as máquinas, os loucos objectivos, o efémero comercial, a falsidade dos sucessos, a mentira das excelências, o artificial do espectáculo encenado para vender um pouco mais, a qualquer preço. Queria dedicar-se às pessoas, às suas necessidades básicas: emoções, afectos, sentimentos, saúde, dignidade, relacionamento, integração.

Mas, como fazer para mudar de vida? Como perder estatuto, como perder rendimento? Como pagar as contas? Como cuidar da família? Como assegurar o futuro dos filhos?

Foi então que Eduardo percebeu que não tinha escolha. O passado definira e condicionara o seu futuro. Eduardo percebeu que se tornara, voluntariamente, num refém. Num refém em busca de liberdade.

 

Fernando Couto

 

02
Abr10

Um lanche artístico (Vida em Sociedade – 9)

Publicado por Mil Razões...

  

 

A Sr.ª Escrita convidou as outras artes para um lanche. Chegou cedo para fazer as honras, escolheu uma bonita esplanada em frente ao mar e uma mesa onde pudessem banhar-se de sol naquele final de tarde luminoso como há muito não havia, naquele Inverno que parecia não querer acabar.

Enquanto aguardava foi olhando à sua volta e cada pormenor lhe agradava mais do que o outro. O mar, de tonalidade enganadora, ora azul ora verde, salpicava de espuma branca a areia da praia que hoje estava ainda mais dourada. As gaivotas, em grupo ou isoladas, completavam este quadro de perfeita harmonia.
A Sr.ª Escrita experimentou uma suave tranquilidade e logo se encheu de vaidade por se sentir o meio preferido dos Humanos para descrever um momento assim. Com sorte, se a pessoa que a usar o fizer bem feito, provoca reacções, descobre emoções, mexe com a natureza humana. Ela, Escrita, quando usada com regras, forma uma língua que, por sua vez, pode ser identidade de uma Nação. Sentiu-se muito importante e desta conclusão deu nota à Sr.ª Música que entretanto tinha chegado.
 
A Sr.ª Música não quis ser desagradável com a amiga, mas logo ali deixou claro que a Sr.ª Escrita não tem o exclusivo de mexer com a natureza humana; ela também o faz e há muito mais tempo. Tem vindo a acompanhar o homem desde o seu início e reforçou o seu argumento:
- O som que ouve, das ondas a desmaiarem na praia, repare, ouça com atenção, não contém uma melodia? Estou em toda a parte - basta que me queiram ouvir. Tenho várias filhas, a que os humanos chamam correntes musicais; elas também são identidades dos lugares onde nasceram. Quem como eu enche estádios e movimenta massas com o único objectivo de ser ouvido? 
 
A chegada da Sr.ª Pintura e da Sr.ª Fotografia interromperam a divagação da Sr.ª Música, não sem algum desagrado desta, a qual, não querendo ser incorrecta, incentivou a Sr.ª Pintura a falar do seu papel. E ela falou. A sua principal preocupação é realçar o que há de belo nas pessoas, nas coisas, nas paisagens nas acções, etc.. E sente-se muitas vezes injustiçada por não ser verdadeiramente compreendida. Facilmente chamam horrível ao belo, tendo como único argumento o não gostarem. Mas até no horrível se pode encontrar uma parte bela.
- Reparem - chama ela a atenção – os fuzilamentos de Góia parecem horríveis, não é? Na realidade as práticas foram muito piores. Eu pego na realidade e torno-a menos agressiva.
 
A Sr.ª Fotografia, sempre tão parca em palavras, não quis terminar o lanche sem defender a sua causa:
- Pois a mim custa-me aceitar ser tão ignorada no mundo das artes. Não fosse eu e como poderiam os humanos registar cenários de guerra, acontecimentos importantes como os casamentos, os baptizados, isto para não falar da imprensa, revistas e jornais. Saiba a Sr.ª Escrita que muitas das revistas não são lidas, mas apenas vistas pelas suas fotografias. Eu, como a Sr.ª Pintura, também reproduzo uma realidade, mas ao mesmo tempo fixo o momento.
A Sr.ª Fotografia acaba a lamentar-se por já não serem os mesmos tempos, os tempos em que as famílias se engalanavam para ir ao fotógrafo e, depois de lhes chamarem a atenção para o passarinho que nunca existia, tiravam uma fotografia para a posteridade.
 
O Sr. Cinema, que nasceu mudo mas rapidamente evoluiu, pese embora ainda não ter passado de 7.ª Arte, é um verdadeiro cavalheiro. Não quis interromper as Senhoras quando chegou, mas logo que pôde entrou no diálogo e, bebericando uma bebida cor de chá mas com cheiro duvidoso, disse:
- Eu até aceito a deselegância de me pagarem o lanche se alguma das Senhoras me revelar um método mais simples de aprendizagem e indicar indústria mais rentável do que a minha. Vejam por exemplo o que acontece nos E.U.A. e na Índia! Não houve de facto argumentos e as contas acabaram à moda do Porto - cada um pagou o seu e cada um foi para seu lado cumprir a agenda.
 
Quando a Sr.ª Escrita entrou na sala de exposições foi recebida pela Sr.ª Música Ambiente. As Sr.as Fotografia e Pintura já estavam expostas nas paredes e, num lugar mais reservado da sala, já estava o Sr. Cinema - um filme sobre o autor do livro que ia ser lançado aquela noite.
Os personagens, já nossos conhecidos, entreolharam-se e respeitaram-se mutuamente. O Sr. Cinema quis divertir as Damas e piscou um olho, a imagem desapareceu do ecrã. Logo um técnico veio repô-la - pensa ele, porque o que aconteceu foi que o nosso amigo voltou a abrir o olho.
As Senhoras das artes riram muito e muito baixinho, tão baixinho que ninguém as ouviu...
 

Cidália Carvalho

 

30
Mar10

Quando o telefone toca (Vida em Sociedade – 8)

Publicado por Mil Razões...

 

Era uma tarde perfeita que convidava à calma e à contemplação. Confortavelmente sentada, deixou que o calor entrasse no seu corpo, que o amolecesse, e percorreu com o olhar toda a beleza que se oferecia à sua frente. A varanda permitia-lhe ver uma parte considerável do vale e, lá ao fundo, os montes recortados no céu, tão azul! 

 

O telefone tocou. Voltou a tocar uma e outra vez. “Pode ser que desistam”, pensou. Tocou mais uma vez e desistiram. “Quem seria? Se for assunto importante volta a ligar certamente”. Abandonou-se de novo à observação da paisagem. Enquadrados por choupos, os pastos verdes, de um verde-claro e inocente, estendiam-se por todo o vale até serem interrompidos por austeros castanheiros. Depois começavam os montes. Primeiro os pinheiros, uma mancha verde-escura, compacta, que subia até se diluir na vegetação rasteira que terminava no céu, tão azul! Aí fixou o olhar, nesse azul intenso, uniforme, imenso.

 

O telefone tocou de novo. E desta vez atendeu. “Estou sim”. Do outro lado, o silêncio. “Estou sim, quem fala?” Nada. Pensou em desligar, mas apercebeu-se de uma respiração ofegante que lhe chegava entrecortada, mas nítida. “Está lá? Isto é alguma brincadeira?” Apurou o ouvido e reparou que a respiração se tornara mais forte ainda. “Quer falar, ou não quer falar? Se não quer falar, eu desligo. Tenho mais que fazer”. Um choro contido, baixo, meio respiração, meio choro, fez-se ouvir. “Diga-me quem fala. Bolas, se ligou, é porque precisa de falar comigo. Ou só quer que eu ouça o seu choro?”. O choro continuou e tornou-se ainda mais contido e mais baixo. E continuou. E continuou até que se ouviu, lá no fundo, muito lá no fundo, “Obrigado”. E desligou.

 

Sentiu-se atordoada, confusa e sobretudo inquieta. “Quem seria? Por que terá ligado? Fui brusca. Mas eu também não adivinhava o que se passava? Podia ter-lhe perguntado… Nem sequer me despedi. Mas não tive tempo. Apesar de tudo, a chamada deve ter-lhe feito bem - agradeceu-me. Será que volta a ligar? Se voltar a ligar…”. O olhar regressou à paisagem. Os verdes, os castanhos e o azul do céu permaneciam iguais, mas lá no alto, bem lá no alto do céu, uma nuvem escura, compacta, era agora o centro da sua atenção.            

 

José Quelhas Lima

 

26
Mar10

Selva Social (Vida em Sociedade - 7)

Publicado por Mil Razões...

 

 

Hoje em dia assumimos como natural o facto de vivermos em sociedade e parece-nos contra-natura o facto de alguém querer viver isolado, como um eremita, apressando-nos a apelidar tal pessoa de doente mental ou fortemente desequilibrado. No entanto, provavelmente nunca parámos muito para reflectir no porquê de vivermos em sociedade? O que é que nos impeliu, desde cedo, a procurar a companhia dos outros? Terá sido simplesmente para termos alguém com quem jogarmos às cartas, ou haverá outras razões mais básicas de acordo com a pirâmide de Maslow?

 

Desde cedo compreendemos que a vida em sociedade traz benefícios, quer pela questão da defesa contra outros grupos e predadores, quer pela facilidade na procura de comida, quer posteriormente pelos benefícios que advieram de uma agricultura mais intensiva, própria do sedentarismo a que os fomos votando, quer pelo apoio dos elementos mais fortes da tribo/família aos elementos mais frágeis.
Com a complexificação das sociedades, fomos desenvolvendo novas respostas para lidar com os novos desafios. Se durante muitos séculos cabia à família a partilha dos conhecimentos e a obrigação de cuidar das crianças, dos enfermos e dos mais idosos (quem é que não tem uma tia mais idosa que ficou solteira para poder cuidar dos irmãos mais novos, ou dos pais?), cada vez mais fomos passando essas obrigações para o Estado (através do desenvolvimento, principalmente nos países de cariz social-democrata europeus, do Estado Providência).

Ora o Estado Providência foi desenvolvendo mecanismos de protecção aos seus elementos mais frágeis e desprotegidos, nomeadamente através da criação da Segurança Social e dos seus subsistemas de protecção social.

Enquanto sociedade fomos percebendo que todos os cidadãos teriam direito à satisfação das mais básicas necessidades (algumas das quais estão previstas na Constituição da República Portuguesa).

No entanto os tempos de hoje são bem diferentes daqueles que se viviam no pós 25 de Abril de 1974, e cada vez mais observamos como a nossa sociedade vai virando as costas aos seus elementos mais desprotegidos, seja pela celeridade com que colocamos os nossos idosos em lares e aí os esquecemos, seja pela pressão cada vez maior de cortar nas prestações sociais aos grupos economicamente mais desfavorecidos, apelidando de preguiçosos e de oportunistas quem recebe estas prestações do Estado.

Muitas serão as razões por detrás destas tomadas de posição (oportunismo politico, crise financeira e concomitante egocentrismo social, desconhecimento da realidade e tomada de posições baseadas em preconceitos e ideias erradas), no entanto este caminho, se por um lado granjeia votos, leva-nos numa direcção francamente perigosa de desagregação social, enviando a mensagem que quem não pode contribuir em determinado momento está a mais, levando-nos no caminho da lei da selva em que cada um olha por si e o nosso “vizinho” de hoje será o nosso “adversário” de amanhã na luta por aquilo que acreditamos ser nosso por direito divino.

 

Acredito que é nos momentos de maior provação que temos a oportunidade de mostrar a nossa grandeza moral, sentido de justiça e altruísmo. Aquilo que fizermos hoje irá ter profundo impacto nas vidas de quem nos seguir e compete-nos a nós reflectir sobre qual o caminho a percorrer daqui para a frente, sem desculpas nem subterfúgios. 

 

Alexandre Teixeira

 

23
Mar10

As diferenças / minorias (Vida em Sociedade – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

Primeiro ponto: este é um tema já gasto. Assim mesmo.

Segundo ponto: nunca é demais falarmos nele.
E digo isto porque trabalho precisamente com pessoas que “sofrem” destes dois “males” de forma conjunta e é dessas pessoas que quero falar… Trabalho com pessoas com atraso mental (vulgo deficiência). Acho que ninguém discordará que são diferentes e muito menos que sejam uma minoria. São diferentes por um universo de motivos e vou-vos poupar aos mais evidentes. Esqueçam os QI e tretas afins. Para o caso não interessam… São diferentes porque somos diferentes e não estou a segmentar duas facções opostas – com e sem atraso mental. São diferentes porque somos todos. Claro que também não vou apregoar aqui uma corrente humanista que coloque a ênfase da beleza Humana na multiplicidade e paradoxal unicidade da espécie. Uns são mais diferentes e outros são mais iguais. É evidente que pessoas com trissomia 21 são mais iguais entre elas do que um grupo de portugueses, católicos, caucasianos ou portistas (acho que consegui abranger quase todas as classes para classificar minorias: nacionalidade / origem étnica, religião, adeptos do FCP). Contudo, aqui tem de se parar um pouco para reflectir.
 
Na frase anterior, comecei por falar da diferença e propositadamente acabei na minoria. Sendo fácil cair no erro de julgar que os dois conceitos são similares ou sempre coincidentes (o que não são), nesta população específica são mesmo. Como vimos, são diferentes entre si como somos todos, mesmo que algumas características de alguns sindromas os aproximem (físicas, mentais, comportamentais, etc.), e são também uma minoria porque constituem (mais ou menos) 3,5% da população portuguesa. Ora, podíamos agora aqui incluir a questão da discriminação, porque estão reunidas as condições ideais para tal. Mas não vamos fazê-lo. Não porque tal não suceda (é evidente que sim) mas porque como português / psicólogo acho que devo dar o exemplo e tentar demonstrar que é possível agir no sentido da intervenção social pela positiva ao invés do “método telejornal”.
 
As pessoas com atraso mental são tão felizes como qualquer outra pessoa (e vou escrever a partir daqui de forma generalista, admitindo sem reservas de cada situação é digna da sua diferenciação e especificidade). Regra geral não sofrem por serem diferentes e se sofrem é porque os fazem sentir assim. Não questionam se são minoria. Se se sentem assim é porque verificam que não têm o mesmo apoio que outros (em contexto institucional é meu dever também referir o apoio deficitário – deficiente, porque não? – que o Governo presta a estas pessoas. Seja ele de forma directa ou indirecta). E aqui reside, talvez, a face mais triste desta situação: o sentimento de diferença e minoria tem origem em causas externas, logo fora do locus de controlo do indivíduo. Ele é vítima do mesmo sentimento que as outras pessoas diferentes e/ou pertencentes a uma minoria. Mas, ao contrário destes não têm um lobby, uma associação, um partido, ou mesmo a sua própria voz que advogue, com um grito social digno de registo, os seus direitos à não exclusão. Que tal sermos diferentes e, deixando a minoria, começarmos a gritar com eles?
 
Rui Duarte
 
19
Mar10

Ser, estar e saber (Vida em Sociedade - 5)

Publicado por Mil Razões...

 

“Os jovens conhecem cada vez mais o mundo em que estão, mas não sabem quase nada sobre o mundo que são.” (Augusto Cury)
 
A Educação é um dos pilares fundamentais da Sociedade. Esta deveria ser tratada e cuidada com a máxima atenção, ponderação e consciência. É com base na educação oferecida hoje que o amanhã poderá ser proveitoso ou, simplesmente, desperdiçado.
Desde o nascimento que o ser humano começa a ser educado, primeiro pelos pais e familiares, depois pela escola e outros círculos sociais onde a criança se encontra inserida. É sobre esta educação escolar que discorrerei os meus pensamentos.
 
De uma educação mais informal onde as únicas aprendizagens que tínhamos seriam as ensinadas e contadas pelos nossos familiares, e das nossas experiências, para uma educação formal, escolar e em sociedade, onde o papel do professor é fundamental para a aquisição das informações, como do saber ser e pensar.
A educação escolar em constantes mudanças… Dizem que agora se encontra em crise… Resta saber se desta crise nascerá uma nova mudança para melhor. Tenho esperança.
No meu tempo, o professor era o substituto dos pais na nossa educação. O respeito por esta classe era-nos incutido desde pequeninos. E se as reguadas ou outros castigos similares existiam, era porque nós os merecíamos. Não passaria pela cabeças dos pais discutirem ou desautorizarem aqueles que nos ensinavam, pois para além de nos passarem toda a informação necessária para o nosso crescimento, também nos ajudavam a saber ser e estar em turma, em sociedade.
 
O que se observa hoje em dia é o crescente desrespeito pela classe dos professores, assim como à culpabilização destes por falhas observadas no desenvolvimento das crianças. Mas não será culpa dos pais, que não lhes dão a autoridade necessária para educar e que, ainda por cima, pouco tempo têm para o fazerem com a profundidade necessária? Não sei… Acho que culpabilizar os pais ou os professores por tudo aquilo que está errado, não levará a lado algum. O importante seria unir forças para que realmente as nossas crianças tivessem um acesso à verdadeira educação do saber ser, saber pensar… antes do simples saber.
 

Ana Lua

 

16
Mar10

Comportamentos desviantes (Vida em Sociedade – 4)

Publicado por Mil Razões...

 

 

Olhando este tema, a primeira coisa que surge no pensamento é algo muito próximo do fora do normal, no sentido em que se desvie do que tenha sido previamente determinado. Ou seja, algum tipo de comportamento que, de uma ou outra forma se desvia do normal, do esperado, do “tal” previamente determinado.
Se perguntarmos a um grupo de pessoas o que entende por comportamento desviante, responder-nos-ão que é algo que foge ao que está padronizado, outros dirão que é algo patológico (relativo a uma doença), outros, algo fora do normal, etc..
Mas afinal quem o determinou? E, por que motivo aceitamos um comportamento e não o outro? O que torna um comportamento normal (correcto ou aceitável) e, o outro desviante?
As pesquisas científicas remetem para problemas do comportamento onde encontramos, também, uma vasta lista de chamados comportamentos anti-sociais, que serão atitudes contrárias e prejudiciais à sociedade.
Será, então, esta sociedade a responsável pelas etiquetas que colocamos nestes e noutros comportamentos? Quererá isto dizer que a sociedade é responsável pelo estabelecimento de regras de conduta para a muito aclamada vida em sociedade (relação entre pessoas; convivência)?
Na verdade, não só o ser humano, como a maioria das espécies animais tem necessidade de viver em grupo com os seus semelhantes. Para isso, é necessário obedecer a um conjunto de regras, que serão os padrões comportamentais próprios que caracterizam cada espécie.
Este conjunto de características permitirá, acima de tudo definir o grupo de pertença de cada sujeito. Podemos dizer que através desse comportamento social é atribuída uma identidade social. Por sua vez, os indivíduos que manifestam um comportamento diferente do esperado são categorizados pelos seus pares como detentores de “um comportamento desviante” ou comportamento anti-social, acabando por não se incluir ou não ter nenhum grupo de pertença.
 

Andreia Esteves-Pinto

 

12
Mar10

Alguns animais são nossos amigos (Viver em Sociedade – 3)

Publicado por Mil Razões...

 

 

O ser humano, como animal que é, facilmente estabelece laços afectivos e emocionais com animais de outras espécies. A razão da aproximação e do desenvolvimento de afectos poderá estar na beleza, na inteligência, ou na necessidade de companhia.

Bolinhas redondinhas e peludas são, normalmente, os que levamos para casa e que se tornam os nossos amimais de estimação, que necessitam de ser alimentados e educados, recebendo o nosso carinho e dedicação.
 
Os animais têm, para muitas pessoas, a capacidade de diminuir a solidão, tornando-se seus interlocutores, ou mesmo confidentes, recebendo, no final do dia, a descrição do que aborreceu ou do que alegrou o seu dono.
Nos momentos em que nos sentimos completamente incompreendidos pelos que fazem parte da nossa raça, parece que aquele a quem chamamos Gião, ou Mia, nos entende perfeitamente e que, com uma lambidela, tenta curar a mais feia das feridas emocionais. É verdade que com tão pequeno gesto podem fazer o seu dono sentir-se mais feliz.
Nunca deveremos esquecer que os animais são isso mesmo: animais, e por isso podemos amá-los até ao limite dessa condição, sendo felizes com a sua presença e ficando tristes com a sua partida. Por isso, não devemos ter vergonha de chorar quando perdemos um animal de que gostamos, que esteve incondicionalmente ao nosso lado e nos dedicou a sua lealdade.
No extremo, os animais poderão ser a única companhia de um ser humano, a razão de uma existência, a presença que assegura a sensação de ser amado, de ser querido. Não é questionável o quanto poderemos aprender com os animais. Podem de facto ser muito importantes e desempenhar papéis fundamentais no desenvolvimento do ser humano.
 
Muitos são os que guardam recordações de momentos inesquecíveis que passaram com animais. Eu sei que guardo…
 
Susana Cabral
 
09
Mar10

Um novo lugar no mundo (Vida em Sociedade – 2)

Publicado por Mil Razões...

 

 

Na varanda do topo do prédio, olha as gaivotas livres e desafiantes, e sente na alma um desgosto profundo de não ser assim livre como elas.
- Dona Maria, bom dia!
- Bom dia, vizinha! Ainda em casa?
- Sim, hoje vou mais tarde para o trabalho! E a vizinha, vai ficar aí a ver as gaivotas? Vá dar uma volta senhora! Hoje até o sol veio espreitar…
- Talvez vá lá abaixo comprar qualquer coisita…
- Bom, tenho de ir… mas olhe, não se fie nas gaivotas! Elas só fazem troça de si… compre um bichano… até logo!
- Até logo… - suspirou a Dona Maria com desalento.
Dona Maria é uma típica senhora do bairro, divorciada, com uma filha, vive sozinha numas águas furtadas da capital. Está reformada, não por alguma incapacitação, mas porque a idade chegou e agora ela é apenas mais um número nas estatísticas. Passa os dias na pouca lida doméstica, mas para além disso, nada faz, para além de ver televisão. De vez em quando, toma café com uma das ex-colegas do serviço, mas isso já é raro. A família mora longe do furor da cidade e por isso só nos dias festivos é que há reuniões familiares. Dona Maria sente-se só, olhando da varanda um mar de gente. Mas, mais do que isso, sente-se inútil e sem vida. Sempre fora uma mulher cheia de vida, mesmo que a vida nem sempre tenha sido carinhosa com ela, porém o fim da vida activa tornara-a amorfa. Já não tinha um propósito, porque tudo aquilo a que a sua vida se resumia tinha acabado, ou seja, o trabalho. O resto já era hábito.
Nessa tarde, Dona Maria decidiu descer à civilização. Foi à padaria, ao talho e tomou um cafezinho na confeitaria da esquina. Estava ela sentada no seu recanto quando se depara com um folheto que dizia: “Precisamos de si!”. Aquela mensagem atingiu-lhe directamente o coração! Intrigada, desdobra o folheto e começa a ler. Tratava-se de um serviço de voluntariado, no qual pediam voluntários para trabalhar com populações desfavorecidas. Bastava ter um coração aberto, vontade de ajudar os outros e ter algum tempo disponível: “Dê um novo sentido à sua vida, ajudando os outros!”.
- Bem, tempo tenho eu! – pensou a Dona Maria.
- Vieram cá uns jovens entregar esses folhetos! – disse a empregada.
- Ah, sim?! Uns jovens… pois, eu já sou velha para isto – desabafou a Dona Maria.
- Velha?! Desculpe, minha senhora, mas não tem cara de velha! Por acaso tem 80 anos? Hoje em dia velho é dos 80 para cima!!! – reclamou a jovem empregada.
A Dona Maria soltou uma gargalhada.
- Muito obrigada minha filha, já me sinto jovem outra vez!
- Olhe, porque não experimenta? Os jovens disseram que precisavam de pessoas, e como a senhora tem tempo livre… - desafiou a empregada.
Dona Maria voltou ao seu refúgio, ainda imersa no folheto que trazia no bolso… tempo tinha ela… e coração com certeza… e precisavam dela. Havia algum tempo que sentia que não era precisa para nada. Olhou o telefone com receio. Ligo, não ligo? Ligou.
Passada uma semana, Dona Maria dirigiu-se ao centro de voluntariado. Ao entrar na porta sentiu um arrepio, como na primeira vez que foi a uma entrevista de emprego. Porque se sentia assim? Foi recebida calorosamente pela coordenadora e falaram sobre as actividades. Sentiu-se invadida por um sentimento de alegria inexplicável, quase como uma adrenalina, um pulsar nas veias. Saiu orgulhosa por ter entrado.
Hoje, a Dona Maria já não olha as gaivotas do topo da sua casa. Dedica o tempo que pode ao serviço dos outros e sente-se livre. Tem uma nova família e encontrou um lar nos colegas e nas pessoas que ajuda todos os dias. Sente-se útil e integrada de novo no mundo que outrora lhe recusava um lugar. Sente que a vida começou de novo, que ainda tem muito para dar. Tem também um novo companheiro de casa, o Tobias, que passa muito do tempo nocturno a vaguear nas ruas, mas volta sempre para escutar as inúmeras histórias que a dona tem para contar.
 

Cecília Pinto

 

Porto | Portugal

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