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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

15
Nov11

A morte (De volta à vida - 13)

Publicado por Mil Razões...

 

A morte. Sempre a morte.

Estava ali. Havia algum tempo que estava ali. Naquele lugar onde uns se escondem e outros receiam entrar. Estava ali, na dor. Estava ali há algum tempo, nem muito, nem pouco, que o tempo nunca tem essa qualidade. Estava só ali. Imóvel. Uma mão presa à vida, que por muito que negasse estava mesmo ao lado, em todo o lado. Outra mão presa à morte, que não aceitava, teimando por isso em não largar. E a sua alma... A sua alma vagueava algures entre aquelas duas paragens, nunca se dando a nenhum dos lados com algo mais do que um tímido acenar por detrás de uma cortina translúcida, mas fechada. E aquela casa afinal era deles. Tinham lá estado, ainda estavam, voltariam a estar, uma qualquer destas ideias era tudo o que lhe bastava para continuar. Imóvel.

E a memória do jardim, do jardineiro. Havia feito um pacto com ele. Sem palavras. Se o jardineiro não soubesse já quem roubava as rosas do jardim, ficou a saber no dia em que inesperadamente dele se aproximou, oferecendo os seus préstimos para ajudar a cuidar daqueles seres plantados. E assim foi roubando rosas ao jardim, sempre que o amor lho segredava ao ouvido.

Sinais da vida. Sempre sinais da vida. Desta vez era o jardineiro que lhe tocava à porta. Não quis atender, preferiu manter-se no crucifixo. Só de lá subiu para a rua passadas umas horas, em anonimato.

Nessa altura ao sair de casa, reparou que já não estavam no mesmo sítio os pés de roseira, há uns dias partidos, pela forte tempestade que por lá passara. A terra de onde nasciam estava agora arada, mexida, virgem de novo. O que restava do velho roseiral pronto para seguir a sua viagem. Parou os seus olhos ali algum tempo. Sempre o tempo, sempre algum tempo. Mas de súbito, sem comandar ou entender, fizeram seus olhos uma quadratura, do chão onde há muito estavam, para a frente onde agora pousavam. Pousavam em camélias, cinquenta, cem, talvez mais de duzentos botões de camélia. Teriam estado sempre ali? Seguramente que não, ou talvez não se recorde, ou talvez apenas se recorde dos pés de roseira. Poemas à espera da escuta que os leve à escrita. Escutou fundo e voltou para casa, em jeito de quem não enjeita rematar o poema das camélias. Juntou as roupas que ficaram, uma manta que algumas vezes os destapara aos dois, uma foto escondida algures no mofo de uma gaveta e uma escova de uns dentes, que tinham sido lindos, mas já não podia saber se eram. Juntou ainda as cartas. As que tinha recebido e guardado, as que escreveu e nunca tinha enviado. Fez um embrulho com tudo, o que ocupava pouco mais do que uma saca plástica, do tamanho de uma prisão. Colocou tudo na carruagem de primeira classe, ao lado daquela onde viajavam as rosas. A morte. Sempre e só a nossa morte.

De volta a casa, sentiu pela primeira vez as gotas de água que a tempestade deixara aos botões de camélia. Encostou-lhes os lábios, há muito cansados de estarem secos.

De volta. De volta à Vida.

 

Vladimiro Fernandes (articulista convidado)

 

08
Nov11

Ser, simplesmente (De volta à vida – 11)

Publicado por Mil Razões...

 

“De volta à vida”.

Não me ocorre dizer muito a propósito. Não tenho experiências pessoais suficientemente interessantes para contar. Nunca voltei, porque nunca fui. Tenho-me mantido por aqui.

Podia falar do caso do meu pai, que depois de um enfarte do miocárdio, teve de ser ressuscitado com choques elétricos. Não sei quanto tempo esteve “ausente”, ou “morto”, já agora. Ele próprio nada tem para contar. Não se recorda de ter visto nenhuma luz branca, nem de ter tido nenhuma outra experiência transcendente com que nos pudesse surpreender. Não se lembra de nada.

E voltou exatamente o mesmo. Logo que pôde levantar-se da cama, tentou convencer uma enfermeira a dar-lhe um cigarro, às escondidas do médico.

O seu renascimento para a vida, nada trouxe de novo. Não lhe abriu o espírito e ele não se questionou sobre o sentido ou o valor da vida. Pensou apenas que se tinha “safado”, a custo, e que dali para a frente, tinha de ser mais cuidadoso.

Mas ele era ele, antes e depois, e como seria de esperar, não foi cuidadoso o suficiente e passados alguns anos, teve que ser submetido a uma cirurgia coronária, com triplo bypass. Dessa vez, pensou ter esgotado as oportunidades que a vida lhe oferecera e tentou, com relativa convicção, mudar de vida, achando que tinha renascido mais uma vez.

“De volta à vida”, terá pensado ele e nós.

 

O tempo passou, a vida foi de novo sendo tomada como algo garantido e seguro e ele voltou a ser quem sempre foi, vivendo o seu dia-a-dia, sorvendo o momento em cada passa de cigarro.

De vez em quando, se lhe perguntarem, talvez fale sobre a sua passagem pelo hospital de Coimbra, sobre o médico que o operou e concluirá mais uma vez, que a sorte lhe sorriu, sem saber de facto porquê. Logo a seguir, o mais provável, é que se lembre de alguma história mais exótica vivida na Índia, onde fez a tropa e rapidamente se esqueça de ter sido operado de peito aberto, onde lhe pararam o coração e o mantiveram a uma temperatura não aceitável para gente viva, durante horas.

 

Das duas vezes em que a sua vida foi interrompida, ele acabou por retomá-la da forma mais natural que sabia e todas as suas ações foram no sentido de uma continuidade relativa.

Renascer… dá afinal trabalho e exige demasiado.

 

Não há grandes ilações a tirar sobre este caso, mas ocorre-me dizer que podemos “morrer” várias vezes durante a nossa existência e voltar todas as vezes, com renovada energia, como se fôssemos viver algo novo e tudo passasse a ser diferente dali para frente, mas na verdade nós somos o que somos e vamos manter-nos assim, atravessando todas as interrupções da vida.

 

Teresa Moura (articulista convidada)

 

04
Nov11

“Serena” (De volta à vida – 10)

Publicado por Mil Razões...

 

Passou muito tempo a cuidá-la. Desde aquele dia em que olhou a mãe nos olhos e a soube doente. Todo o seu ser envolveu-se em angústia. Mas não a sua face, de ser tão forte que era. Abraçou-a. Toda a sua infância atravessou-se-lhe aos olhos. Fora tão feliz. E era-o. Graças tanto àquela mãe. Aquela querida mãe.

 

Quando soube, tinha acabado de tirar fotografias ao céu azul. Estava um pouco zangada com os problemas da vida quotidiana. Quando senti a sua voz, o azul tornou-se vivo. Serena tem essa capacidade. Incrível! Parecia como sempre, serena. Reclamei com a vida. Percebi que algo estava diferente. Foi quando a Serena me contou. O céu tornou-se escuro de repente.

 

Serena, era também mãe. Tinha um pequeno ser nos seus braços, e chorava por dentro ao pensar o que seria deixá-lo. Agradeceu à mãe, naquele momento, todo o seu amor e dedicação. Afinal, não era só uma mãe. Era uma confidente, uma amiga, o seu apoio.

Serena, como mulher determinada que era, decidiu que iria apoiar a mãe a ultrapassar aquela dor intensa, aquele medo, que a doença trazia. Por mais que doesse. E cuidou. Todos os dias. Permaneceu entre a esperança e a tristeza. Permaneceu em todas as pequenas coisas da vida. A mãe de Serena era também uma guerreira nata, e por isso, ajudou também Serena nesta caminhada. Porém, Serena, a pouco e pouco, deixou o seu vibrante riso. Sorria apenas. E eu tinha tantas saudades da Serena.

 

Observei-a do longe, que a distância física permite. Via a apagar-se. Via refugiar-se no lar. Com a mãe. Com o filho. Com a família. Compreendi-a, sem nunca conseguir imaginar o que sentia Serena. Porque ao tentar imaginar, a angústia tornava-se insuportável, dolorosa. Serena chorou sempre num refúgio. Todo o seu ser passou a centrar-se na mãe. Felizmente, o pequeno rebento, graças à sua inocência tão abençoada, lançava rasgos nas bocas de todos. Risos. Aquela pequena bênção permitia vida, num ser que definhava aos poucos.

 

Um dia tornou-se óbvio. Estava para breve a despedida. Às vezes tornava-se tão surreal. Para a Serena tornara-se um modo de vida.

O dia chegou. A mãe pediu com os seus olhos a presença de Serena e seus familiares. Todos a olharam com dor, gratidão, amor, carinho, medo, saudade. A mãe apenas sorriu, e partiu. Partiu como um anjo, e como anjo da guarda ficou, daquela querida família.

 

Vi Serena. Estava ausente. Tinha vontade de chorar, mas não podia. Ela mantinha-se inteira, embora quebrada. Foi tão difícil! Conseguem imaginar?! Eu não! Parte da minha Serena morrera com a mãe. Demorou a voltar a soltar uma gargalhada. Teve de se reorganizar. Pelo seu filho também. Queria ser a mãe que tivera. A ausência era demasiado dolorosa. Mas Serena tinha de voltar à vida. Mas, como?

A Vida mostrou-lhe outra face. Nunca mais será a mesma. Já possui o seu riso, as gargalhadas, mas Serena, continua a sofrer muito. Será sempre a Serena, mas há uma parte de Serena que partiu.

Ainda hoje, Serena, procura voltar à vida, a cada dia.

 

(Para a minha querida amiga “Serena”, num dia tão especial, o dia da sua existência – 19 de outubro)

 

Cecília Pinto

 

28
Out11

Até sempre… (De volta à vida – 8)

Publicado por Mil Razões...

 

Era mais uma das visitas que fazia por altura do Natal, como tantas outras. Sofia, encontrou o seu padrinho combalido mas sorridente, aconchegado no sofá e no calor do cobertor. A sua cabeça careca, que refletia o brilho das luzes natalícias, era estranha. Sim, é verdade que a idade já era avançada e o cabelo ia caindo, mas havia algo de anormal. Animado, o seu padrinho foi desfiando, orgulhosamente, o rol dos últimos acontecimentos e Sofia foi percebendo o quanto havia perdido com a sua ausência: dores de cabeça, mal-estar, idas ao hospital, diagnóstico, operação e recuperação. “Como foi possível? Tudo tão rápido….”. Sofia procurava recuperar do choque das notícias que recebia, ao mesmo tempo que procurava nos olhos do seu padrinho algo que pudesse não estar a ser dito em palavras. Mas tudo o que encontrou foi alegria, muita, pelo sucesso da operação, pelo Natal que passaria com a família, os filhos e os queridos netos. “Estou feliz Sofia, o pior já passou! Dá-me um abraço!”. No caminho de regresso a casa, as emoções ainda à flor da pele turvavam os pensamentos de Sofia. O alívio de que, afinal, estava tudo bem e não passara de um grande susto não era o suficiente para abrandar a tristeza de não ter estado ao seu lado a apoiá-lo, com palavras, com carinho, com a sua presença. “Mas sim, ficou tudo bem e isso é que interessa” – dizia Sofia para com os seus botões na difícil tentativa de encontrar algum reconforto.

 

O Novo Ano chegou. Com ele novas esperanças e projetos e a tristeza de Sofia ia tornando-se mais leve a cada dia que passava. Até que um dia, receou atender uma chamada. O nome que insistia piscar no visor do seu telemóvel era tão raro como preocupante e não augurava nada de bom. Os piores receios de Sofia confirmaram-se e daí foi diretamente para o hospital. Nos olhos do seu padrinho, uns meses antes, havia apenas encontrado alegria sincera. Contudo, o susto tornara-se numa certeza, irremediável e fatal, e a recuperação não passara de uma ilusão. Algumas semanas depois, o homem que visitava religiosamente já não parecia o mesmo que sempre conheceu. Não reconhecia na sua face o carinho dócil dos seus olhos e o sorriso terno de um menino. A doença flagela o corpo mas não se esquece de espezinhar a alma. Numa das últimas visitas, já só o corpo parecia marcar presença naquela cama fria. Em esforço, pediu a Sofia que se aproximasse. A sua voz era já fraca e apesar do grande esforço que fez foi apenas percetível um sussurro: “Sofia, estou a morrer…”. Encurralada entre a vida e a morte, Sofia não sabe se conseguiu conter as lágrimas que inundavam os seus olhos, enquanto lhe afagava a testa quente. Sorriu e disse “Não tenhas medo padrinho, eu estou aqui.”

 

Se é verdade o que dizem sobre os mortos viverem um pouco sempre que os recordamos, hoje trago o meu padrinho de volta à vida.

 

Liliana Jesus

 

14
Out11

Estar vivo não é o contrário de estar morto (De volta à vida – 4)

Publicado por Mil Razões...

 

Para os mais distraídos e para que não haja dúvidas, o melhor é dizê-lo de uma só vez: vamos todos morrer! É uma das maiores certezas desta vida e também uma das mais democráticas: toca a todos por igual e não contempla exceções.

Provoca algum transtorno, sim. Mas é inevitável, principalmente no fim da vida.

Já decorreram milhares de anos desde que começou a morrer gente e continuamos a saber muito pouco sobre este fenómeno. É como se fosse um departamento do conhecimento universal vedado ao Homem, um espaço de sabedoria sem janelas, um lugar de acesso altamente restrito.

Entender a morte parece-me, no entanto, mais simples que entender a vida, até porque é mais fácil falar daquilo que julgamos estar distante de nós. E tal como percebemos melhor o frio se experimentarmos o calor, talvez encontremos o sentido da vida se nos aproximarmos da morte.

Plagiando uma ilustre conhecida dos nossos tempos, "estar vivo é o contrário de estar morto". A vida deve ser, em teoria, tudo aquilo que a morte não é. Assume-se que a vida e a morte ocupam pólos opostos, entretanto, são as duas faces da mesma moeda.

Há pessoas que estão vivas mas não se nota nada. Outras, porém, que já morreram há muito mas ainda se fazem presentes.

Não sei o que é estar morto, logo, também não sei o que é estar vivo. Só sei que a vida se compõe por muitas mortes, como se todos os dias fossemos morrendo um pouco mais. Nascemos, crescemos, tornamo-nos autónomos e às tantas traçamos para nós um plano, uma rota, uma série de caminhos que queremos trilhar: ser saudável, estabilizar as contas, constituir família, envelhecer em paz, por aí fora. Mas não há caminhos sem obstáculos. Uns maiores que outros.

Viver é seguir caminho. A cada obstáculo deixamo-nos morrer. Vamo-nos aproximando gradativamente da morte final através de experiências menores de morte: quanto de nós morre quando parte algum dos nossos? Quanto vivos ficamos depois de um desastre amoroso? Quantas vezes morre uma mãe até que o filho se endireite?

Viver é seguir caminho, de novo. De cada vez que recuperamos de uma dificuldade, a vida continua. Mas entretanto a vida ficou adiada.

Gostaria de perceber qual é a utilidade da morte. De que me serve a finitude? Ter essa espada sempre por cima da cabeça cansa e não me traz qualquer vantagem. Pior: para que me serve ir morrendo aos poucos se posso fazê-lo de uma só vez?

Este procedimento padrão de morrer sempre que se vive é muito estranho. Faz-me pensar que se vamos morrer, então mais vale não me dar ao trabalho de viver. Mas aí começo a equacionar as desvantagens de morrer, que devem corresponder às vantagens de viver, e concluo que ainda não me apetece falecer.

Afirmar que os obstáculos fazem parte da vida parece-me poético. Os obstáculos fazem é parte da morte. Para viver temos que estar sempre a contornar, a enganar e a fugir à morte. Voltamos à vida tantas vezes quantas as vezes que morremos, e o mais certo é essa nova vida ser diferente da anterior.

Em função desta definição é provável que encontremos mais gente morta que viva, porque quase ninguém escapa aos obstáculos. Os conceitos de vida e de morte podem afinal não ser tão opostos quanto se julga. Estar vivo pode não ser o contrário de estar morto. Pode a morte ter sentido se não incidir sobre a vida? Então a vida só fará sentido se for vivida em função da morte, nos momentos em que nos autorizamos a escapar-lhe.

 

Joel Cunha

 

07
Out11

E depois? (De volta à vida – 2)

Publicado por Mil Razões...

 

Como qualquer ser vivo, me intriga a morte. O que acontece depois? É verdade que voltamos, ou talvez não, se o nosso comportamento não estiver de acordo com o esperado? É verdade que voltamos na mesma família, com os mesmos amigos, até superar diferenças?

Não tenho a menor ideia do que acontece. Nunca tive nenhum tipo de experiência, dessas que a pessoa vê um túnel e sai em direção a ele.

O que me atormenta é o que dizem. Nós só levamos o que vivemos, mais nada. Não temos como levar nem um pouco do perfume que mais gostamos. Penso muito nisso, porque como muita gente estou despreparada. Já me falaram que rola um julgamento, onde não existe argumento, você é obrigado a assistir toda a tua vida e será julgado pelas coisas que não fez, não pelas que fez. Também me falaram que o filme da vida é dividido em duas partes. A primeira parte são as coisas ruins, pode levar eternidades para assistir e ver como você lidava com isso e a outra parte, muito rápida, são os momentos bons, felizes, plenos, essa parte dura segundos e isso determina que tanto você aprendeu na vida.

Me sinto despreparada porque não fiz até agora as coisas como deveriam ter sido feitas. Desde que nasci me perdi em problemas de peso, dietas malucas e ideias imbecis sobre o que é bonito ou não. Tenho doutorado nisso, em mutilação, tortura, fome, remédios para emagrecer e milhões de coisas picaretas. Sei tudo isso de cor, posso em segundos falar quantas calorias existem em milhões de coisas. Mas não vou levar o meu corpo ou seja, todo esse trabalho, toda essa dor, no fim não me servirá de nada. Trinta anos jogados no lixo e ainda desconfio que alguém lá em cima vai me dar uma bronca. E não sei se dá para juntar segundos de felicidade, para a segunda parte do filme. Isso também me atormenta. Sempre fui boa aluna aqui, não sei como será chegar lá e ficar ouvindo um monte. Minha única defesa é que eu não fui avisada. Ninguém me disse que os padrões estéticos do mundo não são reais, nem que a felicidade era uma coisa simples, nem que sentimentos ruins tem que ser domesticados, controlados e isolados, como doenças contagiosas.  Ninguém me avisou que eu poderia ser feliz sem muitas ambições, só seguindo o que eu quero, não o que me dizem para seguir. Ninguém me disse que minha vida ou a de qualquer um, poderia ser harmoniosa como a de uma borboleta, respeitando os ciclos e voando só por um motivo, não por milhões deles.

Espero ter tempo de reverter isso, mudar o filme, editar as partes ruins e colocar mais boas . Espero ter tempo de agradecer meu corpo por tudo de bom que ele fez e por todas as torturas que ele suportou em silêncio. Espero ter tempo, gostaria de chegar lá e saber que ninguém me avisou como era a vida aqui, mas ainda assim eu soube viver. Gostaria de pensar isso, talvez já morri um dia, mas agora estou de volta à vida.

 

Iara De Dupont (articulista convidada)

 

24
Mai11

Vida com sentido (O sentido da vida – 3)

Publicado por Mil Razões...

 

Sentou-se no sofá. Ainda tremia. Tudo parecia desmoronar. Maria não podia acreditar nas palavras do médico. Aquela doença. Ainda latejavam as palavras no seu cérebro: ”Senhora Maria, lamento informar, mas o tumor encontrado é maligno. A Senhora Maria tem cancro”. A partir dali deixara de ouvir. Fixara-se na sentença que o médico proferira.

- “Cancro???” – repetia aterrorizada. Como podia estar a acontecer-lhe a ela, que até tinha uma vida saudável.

- “Vou morrer” – desabafaram as lágrimas pelo seu rosto.

 

Maria fora sempre uma mulher enérgica. Tinha uma família da qual se orgulhava e a fazia sentir amada. Era realizada profissionalmente, adorava o que fazia. Maria, era uma pessoa contente com a sua vida. Sempre tudo tivera um rumo.

Após a faculdade, tinha arranjado trabalho na área. Conhecia já Francisco e pouco tempo depois acabariam por se casar, numa cerimónia magnífica, tal como ambos sonharam. Daí para frente a rotina tornou-se um clássico, mas ambos sempre gostaram de desafios e novos projectos, e por isso não tardou a terem filhos e sentirem-se abençoados pela vida. A vida que, num contratempo ou outro, os habituara a sorrir. Não era comum questionar a existência ou até o sentido da vida, já que sempre o destino se encarregara de lhe traçar bons trilhos. Viviam numa espécie de véu que os fazia sentir protegidos, com sentido, como se tudo se encaixasse perfeitamente.

 

Caíra como uma pedra num charco aquela notícia. Francisco nada sabia sobre a doença oncológica de Maria. Maria não queria preocupá-lo com algo que poderia ser nada. Quando ouviu o som metálico da chave na fechadura, Maria estremeceu.

- “E agora?” – pensava. “Como lhe vou dizer que vou morrer?”.

Francisco entrou. Como sempre, fez os gestos do costume, mergulhado no seu automatismo.

- “Amor, cheguei” – anunciou.

Maria manteve-se intacta. Francisco estranhou. Subitamente pressentiu algo.

- “Maria, está tudo bem?” – perguntou preocupado.

A face de Maria tinha as marcas das lágrimas escorridas.

- “Meu amor, que se passou?” – insistiu Francisco.

- “Tenho Cancro” – respondeu secamente Maria.

Francisco estarreceu. Sentiu-se quebrar. “Não faz sentido!! Cancro?”. O mundo desabara. Imediatamente Francisco pensou na morte. Abraçou a sua mulher. Maria em prantos gritava “Vou morrer, vou morrer!!”.

A noite chegara. Estavam ambos deitados na cama sem conseguir deixar de fixar o tecto. Maria sentia-se confusa. Estava amedrontada com a ideia que tudo poderia acabar. Nunca pensara propriamente na possibilidade de morrer assim. Sempre tivera uma vida sem dissabores. Nada daquilo fazia sentido para si. Como era possível, de um momento para o outro, tudo acabar? Simplesmente não fazia sentido. Porquê a ela? Porquê agora? Que sentido tinha ter vivido uma vida de sonho para agora acabar de uma maneira tão terrível? Que sentido tinha a vida afinal?

 

Levantou a cabeça cansada. Estava nauseada. Aquele ciclo tinha sido mais desgastante. Sentia-se fraca. Mas sabia que era normal. Dirigiu-se à cozinha para beber um gole de água. Sabia que Francisco estava a chegar. Queria muito estar no seu colo, com o amor da sua vida. Os braços de Francisco confortavam-lhe a alma e davam-lhe ânimo para combater o Cancro.

Algumas semanas tinham passado desde o choque da notícia. Maria começara a tentar viver um dia de cada vez, como tanto lhe diziam no hospital quando fazia os tratamentos. De certa forma, Maria estava mais desperta para a vida. Para os pormenores. Para quem estava a seu lado. Houve tempos em que nada fazia nexo. Após se confrontar com a morte, com o medo, após discutir com o universo, Maria começara a aprender a sua condição humana, a sua fragilidade. Aceitara o que o destino lhe colocara no caminho. Mas não se conformava em desistir. Francisco não deixaria.

Era como os passarinhos que todos os dias a acordavam. Nascera, crescera, dera à luz, e agora estava na luta pela vida que, um dia, naturalmente, acabaria. Como a de qualquer ser vivo. Maria, percebera que o sentido da vida era ter sentido. Um sentido seu. Percebeu que uma pessoa sem sentido já estava morta, mesmo que organicamente viva. Mas muita vida existia dentro de Maria. Tinha vontade de viver. Viver cada minuto que ainda tinha. Se um dia, por uma questão genética, ganhara vida por puro acaso, não pretendia desperdiçar nem um minuto dessa vida, que inevitavelmente, num certo minuto acabaria por findar. Assim, sem mais nem menos.

 

Cecília Pinto

 

17
Mai11

A morte anunciada (O sentido da vida – 1)

Publicado por Mil Razões...

 

As crianças desconhecem-na, ingenuamente, por não terem consciência plena da condição humana. Os adolescentes ignoram-na, embriagados pela protecção ilusória que a juventude lhes proporciona. Os adultos vão-se vendo obrigados a ir lidando com ela sempre que os seus efeitos tropeçam nas suas vidas. E os idosos aprendem a ir aceitando, dia após dia, a sua inevitabilidade mais ou menos próxima. A morte é uma certeza cruel, fria, uma verdade que encerra um silêncio ensurdecedoramente infinito e que nos acompanha, sempre, ainda que a tentemos esconder, ainda que a tentemos atropelar com o ritmo frenético das nossas rotinas quotidianas. Como perceber, então, como aceitar, que seja esta mesma morte anunciada que garante a beleza única e singular à vida humana e que nos recorda, todos os dias, o privilégio que temos em acordar e em estar vivos?

 

A morte e a sua natureza fatalista provocam no Homem um desequilíbrio constante que deriva da angústia de se conhecer o seu fim inevitável e nada poder fazer para o alterar ou evitar. Mas se o Início já faz parte do nosso passado, quando dele tomamos consciência, e o Final espera-nos irremediavelmente, caberá a cada um nós, enquanto indivíduos, definir e escolher aquele que será o seu “Durante”. Mais do que descobrir o sentido da vida como se de um segredo guarado a sete chaves se tratasse, talvez o Homem deva concentrar-se no caminho que decide ir desenhando na calçada do seu trajecto de vida. Um caminho que assuma sem reservas a tragédia da própria condição humana e que, com a mesma determinação e coragem, consiga reconhecer ao Amor, à Alegria e às emoções positivas, o poder de se restabelecer o equilíbrio existencial. Durante a construção desse percurso, acredito que poderemos contar com a companhia de uma outra grande certeza: a de que “nunca nos sentiremos sozinhos desde que a nossa preocupação seja o bem-estar dos outros” (António Damásio).

 

Liliana Jesus

 

19
Abr11

Ao Tempo o que é do Tempo (Idade Maior – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

O tempo rasteja, caminha, dança e voa, não necessariamente por esta ordem, num frenesim desenfreado e enigmático. Andei décadas “aos papéis”, a tentar adivinhar como e quando, e só agora percebo que ele passa, na velocidade certa, em todas as fases da nossa vida. Quando somos muito jovens, cada dia parece uma eternidade. A ansiedade em ser adulto é tão grande que às vezes nos consome. “Quero crescer. Quero crescer depressa.” E a vida faz-nos a vontade. Chegados a adultos, percebemos que tudo mudou: a nossa percepção do tempo, as expectativas, os sonhos que nos dilaceram, as dores que nos libertam. Tudo. Se tivermos sorte - eu tive - apaixonamo-nos por alguém que nos enche as medidas e nos devolve, numa simbiose perfeita, o sonho de uma vida em comum. Todavia, por mais que alguém se projecte no futuro, dificilmente consegue imaginar o seu aspecto, as suas vivências, na idade maior. Fiz esse “exercício” várias vezes mas, ainda agora, tenho dias em que acordo de manhã e me olho no espelho, e não reconheço aquela velhice na pele. Não sou eu ali reflectido, mas sim aquele rapaz de pouco mais de três décadas, tão vívido na minha memória, que vivia à boleia de um tempo que nunca foi seu.

A idade maior instalou-se, juro que não dei por nada. Equacionei tanta coisa para mim nesta etapa, menos estar só ou sentir-me, cada vez mais, frágil e assustado. Descobri, por exemplo, que não gosto dos dias negros e chuvosos. Quando acordo, abro a janela e a casa permanece na escuridão, vejo a morte na penumbra. Nesses malditos dias escuros, sinto-a junto a mim e morro de medo de que não seja apenas uma visita, e ela não queira regressar sozinha. Então, ainda que chova, faça frio ou me doam coisas no meu corpo que eu nem precisava de saber que existem, forço-me a sair de casa. Misturo-me com a multidão, esperando assim ludibriar a morte e prolongar a minha estadia. Não gosto da solidão, lido muito mal com a falta da minha “metade” de uma vida inteira mas, ainda assim, não me leves a mal, não tenho pressa em te seguir. Muitas vezes te chorei na praia, quando a saudade já não cabia dentro de mim. Gosto de chorar junto ao mar porque só aí as minhas lágrimas parecem pequenas… Mas hoje não quero chorar. Hoje o dia dói.

Hoje está um desses dias negros e pesados. Estou particularmente melancólico. Saí de casa e entrei num autocarro onde, abrigado da chuva, pude ver e ouvir gente. Ao meu lado, sentou-se uma jovem que me sorriu. Não sei por que razão lhe disse o que sentia… Talvez o sorriso dela tenha desvanecido a minha angústia reprimida, tornando-a tão leve que me saiu pela boca. Confessei-lhe, baixinho, que nestes dias sentia a morte presente e que ansiava pelo sol, para alumiar a escuridão. Ela olhou-me nos olhos e disse-me que a morte caminhava com todos nós: novos, menos novos, ricos e pobres, homens e mulheres, desde que nascíamos. E que nos levava, indiscriminadamente, quando nos saía o bilhete premiado. Não consegui deixar de sorrir e, quando me retribuiu o sorriso, senti que havia mais sol sobre mim.

Regressei a casa, ainda chovia. Assim que entrei, lá estava ela na penumbra. Não senti frio, não tive medo. Disse-lhe: “Ah velhaca, hoje não é o meu dia, não tenho o número premiado. Volta amanhã.”

 

Alexandra Vaz

 

19
Nov10

Eu e a Mariana (Depois da tentativa – 2)

Publicado por Mil Razões...

 

A Mariana não foi ontem à escola, nem no dia anterior. Estranho. Pensei que estivesse doente e liguei para ela. Do outro lado da linha, um silêncio ensurdecedor: ninguém. No messenger, nada, absolutamente nada. E não, não era normal. Mesmo quando estávamos doentes, ficávamos sempre ligadas on-line. Havia sempre tanta coisa para contar: o rapaz giro que nos devolveu um sorriso, a professora de Matemática que exigia sempre mais de nós… Um dia na escola, para quem tem 15 anos, é mesmo uma eternidade, repleto dos acontecimentos mais importantes e decisivos das nossas vidas. Mas, e a Mariana?

 

“A Mariana partiu.” – disseram-me hoje os meus pais. Partiu? Para onde? Foi viajar e não me disse nada? Impossível! Nós partilhamos tudo… Até que, o peso da verdade imutável se abateu sobre mim. Senti-me esmagada e sem ar. A minha melhor amiga matou-se?!... O turbilhão de pensamentos embalados por emoções confusas tomou conta de mim. Como é que ela foi capaz de me abandonar? Eu, que preciso tanto da sua ajuda e do seu ombro sempre amigo. Que raio de amiga sou eu que não me apercebi de nada? Mas porque é que ela não me pediu ajuda? Porque é que não falou comigo? Oh… espera; será que até falou? Será que, quando dizia que estava farta de tudo e de todos, será que não estaria a exagerar, como eu pensei? Será que a tristeza que trazia nos olhos era mais intensa do que eu supus? Que culpa que eu sinto! E dói tanto! Quando a minha melhor amiga precisou mais de mim, eu não estava lá. Ou até podia estar, mas não estava atenta àquilo que era realmente importante. Tantas coisas que julguei, pensei, supus, sem nunca procurar a verdade. Tantas perguntas que ficaram por fazer e que agora me torturam. Mas agora é tarde, a Mariana já partiu…

 

Numa coisa tenho razão: a Mariana estava doente. Sim, sofria de solidão. E pela primeira vez na vida, sinto que ter razão é um vazio amargo e corrosivo. E de que serve… de que serve ter razão? Chega de perguntas… perdoa-me Mariana!

 

Liliana Jesus

 

Porto | Portugal

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