A culpa (Depois da tentativa – 4)
À noite tudo é diferente. O Marco chegara a casa e jantava sozinho nessa noite. A televisão estava desligada. Pairava um silêncio denso entre o pensamento cíclico e o olhar vazio pregado na mesa. Por vezes lá ia mais uma garfada.
Acabara de discutir uma vez mais com a Leonor. Ela deixara-se ficar no parque por onde passearam no final de tarde desse domingo. Entretanto a noite caía. Caía Setembro. Caíam as folhas. Caía o calor. Tudo caía.
Marco já largara o garfo e mal tocara na comida. Entrelaçava agora os dedos das mãos por debaixo do queixo, fincando os cotovelos na mesa. Sempre o mesmo, pensava ele, sempre a mesma coisa!
Escureceu. Era noite fechada e Leonor não aparecia. Quando ela entrar por aquela porta vou dizer-lhe tudo! Desta vez está mesmo tudo acabado! Não aguento mais! É sempre a mesma coisa! Não aguento mais! NÃO! AGUENTO! MAIS!
O telemóvel interrompera-lhe a pesada modorra. Rodopiava, contorcia-se na mesa como se estivesse possuído pelo demónio. Tocava, gritava que se desunhava. Sofre, vaca! Sofre! Carregar naquele botão verde seria quase um exorcismo. Não atendeu. Levantou-se. Agarrou numa bebida branca qualquer. Foi vagueando pela sala de copo na mão. Dirigiu-se à varanda e por lá ficou, debruçado no gradeamento, fixado no horizonte. Avistava o reflexo do luar nas águas do Douro. Por vezes reparava distraidamente nas tijoleiras do pátio. Do décimo terceiro andar o chão não oferece boa nitidez. Trespassava-lhe uma vaga sensação de voo. Remirou, revirou mais uma vez a sua vida. Estacava aqui e ali em detalhes doentios. Ciúmes sim, mas haja medida! Balançava agora o copo vazio entre dois dedos. Deixou-o balançar lentamente, escorregando, até ficar suspenso pela borda. Olhou o chão e depois o copo. Saúde, Leonor! Abriu os dedos e viu-o a cair em câmara lenta.
A colisão foi brutal. O estrondo, estrondoso. E ali ficou ele durante uns minutos, imóvel, cravado naqueles despojos confusos, sem pensar em nada.
Começara então a soprar uma leve brisa fresca. Ergueu-se lentamente, agarrou-se ao corrimão da guarda da varanda, inalou profundamente e sentiu-se revigorado. Renascera ali. Vou-me embora! Agarro no essencial e depois venho buscar o resto!
O telefone toca de novo. É de novo a Leonor. Desta vez atende. As coisas têm que ser conversadas.
- 'Tou?!
- (Silêncio).
- Leonor! Estás aí?
- (Silêncio).
- Leonor, vá lá, responde! Temos que falar! Demoras? Anda para casa!
Ela solta qualquer coisa que não se percebe, com voz embargada, vacilante.
- Diz?! Não percebi! Anda para casa, Leonor! Vamos conversar!
- (Silêncio).
Ele cala-se também. Tenta perceber onde ela está pelos barulhos de fundo. Mas não consegue.
- Onde estás, Leonor?
- (Silêncio).
- Leonor?! Então? O que estás a fazer?
Com uma voz trémula mas decidida, Leonor diz:
- Sabes, Marco? Não sabia que a vista aqui de cima da ponte era tão bonita! Adeus!
Joel Cunha