Olhos haviam em todo o lado (Pesadelo – 10)
Foto: Camera – Stafford Green
Saíra do trabalho por volta das dezoito horas. Naquele dia, dispensara o autocarro. Preferira o caminho a pé. Olhos haviam em todo o lado. Mesmo a pé, caminhando sozinho, não descurara os seus cuidados. Mas, naquele momento, achara que era mais prazeroso ir assim consigo mesmo e com os seus pensamentos. Permanecera fechado num cubículo durante horas. Achara que, naquele dia, merecera apreciar a brisa fresca do final daquela tarde, ainda quente, de outono.
Apesar do final de dia agradável, a cidade era negra, impregnada com cheiros descaraterizados, cinzenta e fria, tal como as pessoas. Os transeuntes, anestesiados para o mundo, indiferentes ao que se passava ao seu redor e cabisbaixos, percorriam aquelas ruas todas iguais. E era exatamente isso que se pretendia. Afinal, olhos haviam em todo o lado.
Não sei por onde vagueavam os seus pensamentos, a sua expressão mantivera-se inalterada durante todo o percurso. Imagino, apenas, que a cada passo que dava sentira-se um pouco mais perto de si e de quem era.
Chegara, por fim, a casa. Subiu as escadas do prédio, as chaves do apartamento já iam na mão. Fez uma pausa, suspirou e rodou a chave na fechadura.
Era um apartamento modesto e cinzento, tal como o resto da cidade, primado pela limpeza e pela organização. Tinha apenas uma divisão e uma pequena janela, que não deixava entrar muita luz. Ao fundo do lado esquerdo encontrava-se a cama; olhando para o lado direito tinha a cozinha e a mesa de jantar.
Ao entrar em casa, ligara logo a televisão, que se encontrava no centro da única divisão da casa. No mesmo canal de sempre e com programação, digamos, seletiva. O alerta passara, agora, para o nível máximo. Os cuidados com os gestos, movimentos e expressões redobraram e a anestesia voltava o fazer o seu efeito.
Tirou do mini frigorífico as sobras do jantar do dia anterior e saboreou-o com o gosto amargo de quem sabe que até isso é controlado. Lavou a loiça, pois impecavelmente limpo e organizado era ordem, e preparou-se para dormir.
Deitou-se olhando para o teto com a indecifrável expressão que o acompanhara sempre. Adormeceu, enfim. Era no son(h)o que começava realmente a viver, livre. Amanhã, quando acordar, a anestesia voltará a fazer o seu efeito.
Sandra Sousa