Manual dos amantes frios (Fé – 5)
Foto: Model - Engin Akyurt
“Não posso escolher como me sinto
Mas posso escolher o que fazer a respeito.”
“Ninguém poderá jamais aperfeiçoar-se,
Se não tiver o mundo como mestre.
A experiência adquire-se com a prática.”
W. Shakespeare
Tinha uma vida modelo. Seguira o plano, trabalhou e casou, teve filhos. A família diria ter arranjado o marido perfeito. A vida corria bem. Até deixar de correr.
Separou-se, viu-se a priorizar quem aliviava a rotina diária, a lida da casa e a educação dos filhos. Apareceu companhia a quem era fácil pedir ajuda, estava ali. Era também com essa pessoa que se divertia, veio a descobrir, achando-se amiúde a sorrir como há muito não se ouvia. Mas não sabia que significado dar aos sentimentos que começara a nutrir por aquela pessoa, que se tornara um ponto de luz.
Fala-se da fé quando por acaso se anda muito longe dela. Não vemos nada ou mesmo que víssemos, a bússola deixou de funcionar.
Outrora, caminhava-se por ruas, casas, pessoas e valores que iluminavam o percurso como amoras frescas por entre as silvas.
“Tens de ter fé” ouve-se. Por vezes, surgem o “Tens de dar tempo” com o “Tens de ter calma” quando parece que já perdemos algo para sempre, que nunca chegamos a lado algum ou que algo nunca mais cessa, com a íntima sensação de que algo já deveria ter mudado.
Para dias de pouco ardor, como preservar o fogo e mantê-lo quente?
Lemos que a vida é uma viagem, para ter esperança no futuro, nos outros, em nós. Podemos também procurar o momento em que nos vimos pela última vez. Encontrar os nomes, os gestos e os cenários que, então, nos acompanhavam. Visitá-los. Voltar humildemente a essa antecâmara pré-tempestade. Ir com medo e a tremer, ir sem esperança, mas ir. Reconhecer-se nessa memória. Depois até chorar, se nada acontecer de diferente. Foco na respiração. Hoje, inspiro e expiro e isso basta-me.
Tentar voltar, ver dos passos tomados, mãos e sorrisos que nos seguravam.
Aparecer aí, aguardando o que por lá se sentiu ou pressentiu. Deixar-se estar ainda mais um bocadinho e respirar.
Um dia, entra-se em casa e algo acende dentro de nós. Ficamos quentes e surpreendidos. Não sabemos bem o que é esta sensação, mas sabemos que queremos que continue. Afinal, contávamos com mais alguém que não sabíamos lá estar: connosco próprios e a nossa capacidade de cuidar de nós.
E aguardar que esse alguém nos encontre, fechando a porta atrás de si.
Maria João Enes