Eu nunca fui criança (Infância – 6)
A contemplação do fogo acalma-nos, conduz-nos a um estado de hipnose que convida à reflexão, aplaca os nossos demónios e gera consensos. São marcas imemoriais gravadas nos genes, um legado dos nossos antepassados que viviam em cavernas, que no seu interior ficavam retidos por longos períodos de tempo e que tinham a fogueira por centro das suas vivências.
Lentamente, o fogo consumia a enorme raiz de oliveira e fazia-nos chegar um calor poderoso e envolvente. Vértice dos nossos olhares, a lareira do hotel autorizava o silêncio. Não havia entre nós qualquer ponto de contacto para além dos que decorriam das obrigações profissionais e na minha mente começaram a dançar palavras para o definir. Iam e vinham num rodopio que acompanhava o evoluir das chamas. De súbito, estabilizaram, formando um conjunto que me pareceu ajustado. Tosco, grosseiro, áspero, rude. BOÇAL. Boçal surgia em maiúsculas e assim me parecia que deveria ser. BOÇAL. Boçal em letras de fogo, maiúsculas, encaixilhadas pelo granito da lareira.
- A minha família era muito pobre. Miserável. Dormíamos em velhos colchões de folhelho e nos dias rigorosos de inverno, quando o frio era tal que me impedia de dormir, eu ia deitar-me junto da nossa vaca. Mas mesmo nesses dias em que o vento trespassava as pedras nuas da casa, logo que o dia raiava, a minha mãe, único adulto da família, vinha junto a mim lembrar-me que era preciso apanhar a erva para os animais. E lá ia eu, pequeno e frágil, tiritando de frio e a cambalear de sono, descalço, segurando a foucinha numa mão e esfregando os olhos com a outra. Terminada a cega, calçava os socos e ia para a escola. Lembro-me, como se fosse hoje, do último gesto antes de entrar na aula: usava as mangas da minha jaqueta, dos ombros até aos punhos, para limpar o ranho que me escorria até à boca. E lembro-me de não ter forças para correr ou saltar, nem ter vontade de o fazer. De olhar para um pião ou para um arco e uma gancheta e os achar objetos estúpidos, inúteis, sem sentido. E lembro-me de ter fome e da dor que a fome me causava.
As chamas da lareira tornaram-se difusas e cada vez mais distantes. Um frio fino e cortante atravessou o meu corpo e eu senti-me desconfortável. E frágil. Os nossos olhares encontraram-se e assim ficaram por alguns momentos, num daqueles raros instantes em que duas pessoas se sentem completamente ligadas mas sós no mundo.
- Sabe, eu nunca fui criança.
José Quelhas Lima