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O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

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29
Jul19

A dor de quem não chora (Dor – 8)

Publicado por Mil Razões...

Girl - Mark Frost.jpg

Foto: Girl - Mark Frost

 

Chorar é uma forma de expressão, dizem. A primeira, sabemos. A caminhada da existência começa com dor e choro. Todas as criaturas se apresentam ao mundo e ao primeiro encontro com os progenitores, chorando. Prosseguimos o nosso ciclo vital, vamos aperfeiçoando e dando mais sentido ao choro, descarregamos cargas emocionais, boas, alegres, más e tristes, e dores.

Cresci a ouvir dizer que homem digno de assim ser chamado, não chorava. Mas, se nos tempos idos só às mulheres era permitido chorar, hoje o paradigma mudou. Os homens já não têm de conter as lágrimas. Quando choram publicamente são queridos, sensíveis e geram empatia, o mesmo não acontece com as mulheres que são, muitas vezes, consideradas choronas, fracas ou com desequilíbrios.

Em minha opinião, chorar é muito mais do que uma questão de género, é a necessidade de livremente, uns e outros, podermos exprimir o que sentimos. Com rótulos e colagens de género a dificuldade de chorarmos é grande. Não queremos ser conotados com fofuras ou desequilíbrios, defendemo-nos e, ao fazê-lo, deixamos que nos roubem a possibilidade de nos exprimirmos pelo choro. A compreensão autoriza-nos, mas as considerações à volta do ato de chorar, desautorizam-nos. Sou mulher e gosto de baralhar estereótipos, por isso, proíbo-me de chorar em público. Não me lembro de alguma vez ter transgredido esta regra autoimposta que me tem poupado a considerações genéricas de que as mulheres choram com mais facilidade. Chorei, certamente, na inspiração da primeira golfada de ar, por razões óbvias, não me lembro; do que me lembro, é que a ninguém dou o gozo de me ver chorar. Paguei caro este propósito, como se veio a verificar.

 

Morreram-me três filhos, dois gémeos nado-mortos e outro de meses, morreu-me pai, mãe, amigos e vizinhos e, com tudo isto ninguém se pode gabar de me ter visto derramar uma lágrima. Todos se preparavam para me acudir, consolando-me, a todos dispensei com sincero reconhecimento. Não me perdi em carpiduras públicas que a vida é para continuar. As minhas perdas vivo-as e sinto-as à minha maneira no isolamento da noite e no recolhimento da alma. Nesse encontro comigo invoco os meus mortos, dedico-me tão intensamente a recordá-los que posso senti-los, tocá-los, estar com eles. Quando, recentemente, enviuvei senti que as atenções se viravam para mim; o meu falecido marido estava delegado para segundo plano. Sobre mim recaía a curiosidade de saber como iria viver o momento. Todos achavam que esta era a perda que faltava para eu mostrar um pingo de humanidade. Em surdina, comentavam a minha anormalidade. Receei não conseguir controlar e reter uma lágrima mais teimosa, de muito me valeu o treino em contenção, inverti-lhes o sentido, senti-as correr dentro de mim e dissiparam-se sem deixarem rasto. Os meus filhos, entre soluços, choro fácil e lágrimas abundantes vigiavam-me discretamente. Não tão discretamente que eu não tivesse dado conta das suas aflições para comigo, mas, para surpresa de todos, permaneci igual a sempre, recebi as pessoas, conduzi as orações e recolhi-me no fim das cerimónias fúnebres.

Não fujo da dor. Nunca fugi. Sinto-a e, sem alarido, entrego-me a ela à minha maneira, mas nunca a ponho em primeiro lugar. Foi assim até que, dia após dia, me senti fraquejar e recolher-me cada vez mais em mim, até ficar sozinha. Isolada de todos, alheada de tudo, levantar-me para enfrentar o dia exigia forças que não tinha. A luz que entrava pela fresta aberta, em vez de me animar, derrubava-me; não queria ver nem ouvir nada que pudesse arrancar-me àquela letargia. A vida ao redor chegava-me como um peso difícil de suportar. Viver, doía.

 

O diagnóstico médico surpreendeu-me, não me reconhecia naquelas caraterísticas estruturais – rígida, demasiado exigente e determinação a roçar a teimosia –, mais grave ainda era a ignorância que revelava de mim sobre as reais capacidades para tudo enfrentar.

Nunca tive dificuldade em processar emocionalmente as minhas dores, pensava eu, mas para não parecer fraca, e por vergonha, nunca experimentei aliviar-me aguando os olhos.

Aprendi a descobrir o conforto das lágrimas. Senti-las quentes a deslizarem pela face enquanto a leveza me vai tomando é um luxo que desconhecia. Passei a autorizar-me a viver com esse luxo.

Fraca? Serei. Mas quando me virem chorar, se quiserem rotular-me, digam apenas que sou humana e estou a tratar bem a dor.

 

Cidália Carvalho

 

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