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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

16
Nov10

Ao acordar (Depois da tentativa – 1)

Publicado por Mil Razões...

 

Abre lentamente os olhos. Há demasiada luz.

- Onde estou? – Pensou; - Morri? – Suspirou.

- Olá, como se sente? – Pergunta calmamente a enfermeira.

- Não morri? – Responde.

- Não, não morreu, mas quase. – Retalia a enfermeira.

Ana sente vontade de vomitar, começa a ficar agitada e sente cólera a invadi-la. Quer gritar, mas nem o grito de raiva consegue expulsar. O ar falta. Os enfermeiros acodem.

 

Trimmmm…

- Ah, estou? – Atende uma voz estremunhada.

- Boa noite. Estou a falar com a senhora Patrícia? – Pergunta uma voz estranha.

- Sim, é ela. Quem deseja saber? – Pergunta.

- Senhora Patrícia, ligamos do hospital. A sua filha Ana está cá internada. Pedimos que venha o mais rapidamente possível.

Num salto senta-se na cama.

- O quê? A minha filha?! Que aconteceu? – Pergunta com o coração sobressaltado.

- A sua filha está estável, mas pedimos que compareça por favor.

A meio da noite duas personagens lançam-se numa corrida louca para o hospital. Não há vermelhos que os impeçam. Os corações batem demasiado rápido para abrandarem num semáforo.

 

- A minha filha está aqui internada. Quero vê-la. – Atira Patrícia.

- Nome? – Remata alguém com impaciência.

- Ana – desespera a mãe.

- Aguarde um momento, por favor.

- Aguardar?! O que se passa com a nossa filha? - Pergunta um olhar assustado.

- Um médico já os vem atender.

Os olhos extravasam lágrimas. Patrícia sente-se ansiosa, angustiada, nervosa. A sua filha, a sua única filha.

- São os pais da Ana? – Pergunta o médico.

- Sim. Responde o pai, com a mãe nos braços.

- A vossa filha está agora estável.

- O que aconteceu, doutor? – Pergunta a mãe.

- A sua filha tentou suicidar-se com comprimidos.

- O quê?! Sui…suicidar-se? A Ana?! Não é possível – diz o pai

- A minha Ana? Porque faria uma coisa dessas? – Continua, aterrado.

Patrícia não reage. O seu mundo desaba. Há um grito que se espalha e a quebra por dentro.

- Como foi capaz? – Diz por fim.

Há confusão, alheamento e uma súbita mágoa naquelas duas personagens.

 

Ana, já não tem lágrimas. Continua desolada pela sua sobrevivência.

A raiva persegue-a.

- Quero morrer!!! Porque não me deixaram morrer?! – Grita angustiada.

- Os seus pais estão aqui Ana. Para a ver – diz a enfermeira.

Ana pára. O seu corpo gela. Os seus pais, aqueles que lhe deram vida estavam ali. E ela só queria morrer. O coração está em espera. Não bate. Sofre e tem medo. Medo do confronto com os seus progenitores. Ela não queria fazê-los sofrer. Só queria partir. De vez.

- Ana, como pudeste? – Pensou a mãe enquanto a olhava nos olhos.

- Filha – diz em vez.

Ana desata a chorar. Esconde os olhos, como quem esconde a culpa.

O pai abraça a filha e promete estar sempre lá, dizendo que ela não está sozinha. Ana sente ainda mais culpa.

A mãe fixa a filha. Sente culpa também. E raiva. Como pôde aquilo acontecer.

- Filha, que fizemos nós? Onde falhamos? – Pergunta desesperada a mãe.

- Patrícia, agora não. – Responde o pai.

- Vai tudo correr bem, filha. – O pai abraça de novo a filha. - Vamos conseguir ultrapassar isto.

O quarto permanece cheio de dor, culpa, remorsos, tristeza, vergonha, medo, raiva. Todos estão partidos à sua maneira. No meio de tanta dor, permanece no entanto o amor. Está ali, mesmo que nem todos o consigam olhar nos olhos.

 

Cecília Pinto

 

05
Out10

Já não tenho medo (Histórias de Amor – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

- Hoje sonhei que estava no Céu… - disse ele - …e senti bem-estar… senti paz…- continuou - Se o Céu for assim já não tenho medo de morrer!

- E vai ser assim… não vai? Vamos estar em paz… – disse ela.

- Sabe… hoje a minha Mulher faz anos…

 

Conheci o Sr. Armando e a esposa em meados de Junho. Ele tinha 44 anos, ela perto dos 50, estavam juntos há 10, ambos no segundo casamento. Ele tinha um cancro em estado avançado e encontrava-se em fase terminal. (- Foram 5 anos de luta! Sabemos que o fim está próximo…) Após o diagnóstico ela deixou de trabalhar para o acompanhar, para poder estar sempre por perto. (- Ele é o mais importante… quero estar sempre ao lado dele, quero fazer o que estiver ao meu alcance para que ele esteja bem… esteja feliz… até ao fim.)

Tinham tudo preparado. A pedido dele, ela comprou um pedaço de terreno no cemitério da aldeia, escolheu a lápide que ele mais gostava, arranjou o fato que ele vestiu no casamento e que ele gostava de poder usar no dia do funeral. Conseguiu também proporcionar o reencontro com o filho, com quem ele já não falava há alguns anos.

Quando o Sr. Armando foi internado, já mais debilitado, a sua preocupação era o aniversário da esposa (- Sei que é o último… gostávamos de poder passá-lo juntos…). Nesse dia o Sr. Armando acordou bem disposto, disse que se sentia muito melhor, o seu olhar estava atento e tinha um brilho especial. Quando a esposa chegou conversaram, riram, brincaram, choraram, beijaram-se… Ele ofereceu-lhe a prenda que religiosamente guardava na gaveta da mesinha de cabeceira.

Ainda nessa noite o Sr. Armando faleceu… em paz.

 

Este relato é baseado em factos reais, na história de um dos doentes que tive o PRIVILÉGIO de conhecer. Foram feitas algumas adaptações e o nome da personagem é fictício; todos os diálogos são reais.

 

Joana Gonçalves

 

28
Set10

Sinto tanto a tua falta (Histórias de Amor – 4)

Publicado por Mil Razões...

 

- Mãe, conta-me outra vez a tua história e do pai.

E eu contei, pela enésima vez, como eu e o teu pai nos conhecemos. Falei-te da magia que ambos sentimos quando os nossos olhares se cruzaram. Das juras de amor eterno, do casamento, da felicidade que nos invadiu por acreditarmos ser almas gémeas. Contei-te o quanto te desejamos, todos os planos que fizemos contigo e a tremenda alegria que sentimos quando te apertamos nos braços pela primeira vez. Mudaste as nossas vidas para sempre.

Durante os nove anos seguintes vivemos em estado de graça. É incrível o quão apaixonados nos sentimos, todos os dias mais um bocadinho, por um filho! Disse-te que te amava assim, com um amor que foi crescendo dia após dia, até já não caber dentro de mim.

 

Desta vez, já não contei a história até ao fim. Tu, já não a ouvias. Senti a tua mão soltar-se da minha devagarinho e os traços do teu rosto suavizarem-se, como se tivesses adormecido. Respiraste pela última vez. Eu também.

Não sei durante quanto tempo chorei depois da tua morte. Toda a gente pensou que chorava apenas por te perder de uma forma tão vil mas, na verdade, também chorava pela culpa que me atormentava. Senti-me aliviada quando partiste. Já não suportava ver-te sofrer, dia após dia, durante tanto tempo. Não suportava os teus gritos de dor quando já nada te aliviava. Consegues perdoar-me, filho? Eu ainda não me perdoei a mim própria…

Não compreendo muitos dos meus sentimentos, apenas descodifico o amor que sinto por ti…Passaram-se três anos, dizem. Não sei… O meu tempo parou quando partiste e ainda não acordei desta letargia que se abateu sobre mim.

Hoje estou aqui, ao pé da tua campa. O teu pai fez questão de a escolher; foi a última coisa que fez antes de partir. Estive muito tempo sem cá vir mas hoje saí de casa. Vim ver-te. Vim contar-te de novo a nossa história. Sei o quanto gostas de a ouvir. Dizias que os meninos deviam ser todos especiais e nascerem de histórias preciosas, como a tua. Tinhas razão, filho…

 

O teu pai já cá não está para a contar comigo. Não suportou a tua ausência e perdeu-se nele próprio, tal como eu. No entanto, descubro hoje que há amores que resistem à ferocidade do tempo e às intempéries da alma, e que se prolongam para lá da vida.

Já não te posso abraçar, nem ouvir a tua voz, mas continuas a viver dentro de mim. Aí, nunca morrerás, nunca sofrerás. Serei sempre a tua mãe, serás sempre o meu querido filho.

Sempre. Para sempre.

 

Alexandra Vaz

 

17
Set10

Amor e prisão (Histórias de Amor – 1)

Publicado por Mil Razões...

 

Há histórias de amor que são transversais à História, passam de país para país até à sua universalidade, ano após ano, década após década, séculos, até à sua imortalidade.

Gosto dos finais felizes. E, nos casos em que o trágico imortalizou a história, torço pela reversibilidade do final. Importar-me-ia pouco, ou quase nada, se a História não trouxesse até mim o amor de Romeu e Julieta, desde que os dois não morressem no final. Alterar o final é assassinar a imortalidade deste romance, mas que ao menos Julieta acordasse antes do seu amado tomar o veneno fatal.

E o que teríamos perdido se Pedro e Inês simplesmente tivessem casado e vivido felizes para sempre, enfrentando a contrariedade de D. Afonso IV e o despeito de D. Constança? Gosto de histórias de amor e os finais tocam-me particularmente. Conheci recentemente mais uma história de amor à qual, tivesse eu possibilidade, alteraria o final.

 

Um dos lugares mais carregados de simbologia na prisão de Kilmainham Gaol, em Dublin, é a capela. Simples, com um modesto altar colocado no lugar onde antes tinha sido uma porta, acesso a um pátio onde fuzilavam os presos cuja sentença ditava esse fim. Naquela capela realizou-se um casamento que teria apenas a duração do dia seguinte. Não sei que felicidade experimentaram, mas o anúncio da vida interrompida do noivo - decisão inalterável, só pode ter-lhes causado uma imensa dor.

Joseph Plunkett, com 25 anos, um dos líderes da resistência irlandesa, foi preso em 1916, julgado e condenado à morte. Apesar do peso desta condenação a sua namorada, Grace Gifford, quis casar antes que fosse cumprida a sentença. As autoridades deferiram o pedido e a cerimónia do casamento decorreu na singela capela da prisão Kilmainham Gaol onde Joseph Plunkett estava preso. Quando a cerimónia terminou Joseph foi novamente para a sua cela e a recém esposa, agora Grace Plunkett, foi acompanhada à saída da prisão. Aí permaneceu, enconstada ao muro, até às 4 horas da manhã, hora a que ouviu os tiros que tiraram a vida ao seu amado.

Poucos terão tido a honra de testemunhar este acto de amor, mas houve alguém que, com a sua bondade, surpreendeu a desgraçada Grace. No dia anterior à data do casamento, chorosa, foi comprar as alianças. A sua imagem de tristeza não combinava com o acto que iria realizar e suscitou a curiosidade do ourives que, depois de saber o que se passava, ofereceu-lhe as alianças mais caras que tinha na loja.

Enquanto houver alguém que nos credibilize como humanos, a vida tem valor e o nosso futuro é possível.

 

Não sei que força animou Grace para, naquela madrugada, abandonar o muro que a separava do pátio onde jazia o seu marido. Não me custa crer que, no seu entendimento, a melhor maneira de o chorar seria empreender a sua luta. Ela não voltou a casar mas voltou àquela prisão, no período da guerra civil, então como reclusa.

 

Cidália Carvalho

 

14
Set10

Sentir, com todos os sentidos (Ser – 7)

Publicado por Mil Razões...

 

A porta fechou-se nas suas costas. Ficou parado na soleira. Olhava em frente, olhos fixos, firmes e serenos. Olhos ávidos de reencontrarem o mundo, de receberem imagens de pessoas, de ruas, de carros, de árvores, de flores, de céu, de rio, de mar. Queria tudo sentir, com todos os sentidos, tudo encontrar e descobrir como se tivesse nascido naquele dia. Sentia-se renascido – tinha recebido uma segunda oportunidade. Como este dia começava diferente!

 

Reconhecia ter ontem excedido todas as medidas. Ao longo do tempo levara ao extremo, sem disso dar conta, o convencimento de que tudo girava à sua volta, de que sobre tudo tinha controlo. Ontem, as suas duas décadas de vida continham toda a experiência e sabedoria do mundo. Ontem, os outros - os mais velhos, os pensadores, os filósofos, os cientistas, as igrejas, Deus - todos treta, todos estavam errados, nada eram ou valiam. Ontem, à noite, mais uma discussão com ela, mais uma disputa, filha do seu ego sem forma, sem jeito. A maior, a mais dura e agressiva, a mais fútil de todas as discussões, em favor da mais vazia de todas as razões.

E de repente, o aperto no peito, a falta de ar, a incapacidade de se manter de pé. O coração dela já muito tinha batido, demasiadas vezes com demasiada força, por más razões, e estava agora a fraquejar.

O amor, bem por baixo de grossas camadas de estupidez por ele laboriosamente tecidas com fios de ideologia e de indiferença, agigantou-se e dominou-o por dentro. Abriu-lhe os olhos para que a visse. Abriu-lhe os ouvidos para que a escutasse. Abriu-lhe o coração para que a entendesse e aceitasse. E ao ego, com todas as certezas que continha, rebentou-o, esvaziou-o, fê-lo rodopiar como um balão moribundo dentro do cérebro dele.

E assim, alterado, regressou a si mesmo. Inundou-o o medo da morte, o medo de que ela morresse, assim, ali, por sua causa, por tanta tristeza acumulada sem dele desistir. Quis levá-la ao hospital, insistiu, persistiu na vontade. Ela recusou, insistiu, persistiu na recusa. Ele não tinha como a obrigar mas sentia que sem isso a perderia para sempre. E isso seria injusto para ela. Teve de aceitar a recusa e encontrar outra forma de conseguir que ela vivesse. Abriu a memória, procurou algo que por vontade própria rejeitara, deitara fora, espezinhara. Ajoelhou-se e começou a rezar. Rezou toda a noite, de joelhos no chão, cotovelos na cama dela, com determinação e fé. Bem mais tarde ela acalmou, repentinamente. Ele receou o pior, mas logo se tranquilizou. Fixou a hora – uma hora - e continuou a rezar, até que adormeceu. Acordou entorpecido e como já tudo estava bem, cambaleou até à sua cama.

De manhã, bem cedinho, o telefone tocou. Ele acordou e atendeu. Era a vizinha do lado que noticiava que naquela noite, era uma hora, o seu marido morrera súbita e inesperadamente. Ele compreendeu que naquela noite a morte estivera naquela casa. E Deus também.

 

A porta fechou-se nas suas costas. Ficou parado na soleira.

 

Fernando Couto

 

17
Ago10

A espera (Expectativas – 9)

Publicado por Mil Razões...

 

- Este exame já está. A doutora virá já ter consigo.

Mais um exame para a já longa colecção. E depois mais outro e outro e outro… Quantos mais quererão eles? E para quê tudo isto? Perceberão o quanto cada exame me faz sofrer?

Levou a mão à cabeça, passou os dedos pelos cabelos, lentamente. Sempre gostou do seu cabelo e de o ter um tanto comprido – liso, ondulava ao crescer. Fez a mão deslizar lentamente, para melhor fixar a sensação na memória. Desde que aceitara que o fim estava a aproximar-se, procurava fixar todas as boas sensações, as que estavam ignoradas, as suas conhecidas, as que experimentava pela primeira vez, tentando guardá-las bem vivas para as levar consigo.

Ai estas esperas, estas esperas e desesperas… Os médicos evitam falar comigo – demoram, depois chegam e despacham, com o carinho e o embaraço de quem sabe que nada resulta, de quem não tem respostas, nem soluções. Não sabendo lidar com estas situações, refugiam-se nas tentativas sem fim. Tentar o quê? Falta-lhes coragem, acho eu. Um destes dias vou ter de assumir por eles, colocar fim a estas tentativas e exames, deixar a natureza funcionar, sem ser contrariada, sem ser retardada.

Olhou as suas mãos – estavam magras, secas e picadas.

Para quê continuar a estragar estas mãos?

 

Esticou-se na cadeira, deixou a cabeça cair um pouco para trás. O seu pensamento foi para longe.

Todos fogem da morte, seja ela dos que lhes são indiferentes, seja dos que lhes são queridos, seja da sua própria morte.

E logo o pensamento veio para mais perto. Recordou o rosto da sua mulher e desejou estar junto dela, tocar-lhe, senti-la. Sabia o quanto ela iria sofrer com a sua ausência e essa era já a única coisa que o incomodava emocionalmente. Queria morrer junto dela.

Como vais sofrer minha querida -  e eu nada posso fazer para o evitar. Sei que te reencontrarei e isso tranquiliza-me, mas irás ficar aqui, sozinha, por algum tempo. Sei que irás sofrer em silêncio. Espero que os nossos filhos consigam ser para ti alguma compensação.

Tentou parar o pensamento, colocá-lo no vazio, descansar. Ficou assim durante uns minutos.

Depois, recomeçou a construir pensamentos, lentamente. Sentia-se cansado e, tanto quanto conseguia avaliar-se a si mesmo, preparado. Ou quase preparado. Queria ver algumas pessoas, uma meia dúzia de pessoas, pela última vez, mas sem o revelar para não as assustar, e depois sim, estaria preparado.

 

Queria ficar tranquilo, senhor da sua sorte, com a família, em particular com a mulher que amava. Já não aguentava o inútil esforço de mais exames e testes.

Está decidido: quero seguir o meu caminho sem mais atrasos. Quero ir para casa!

 

Fernando Couto

 

25
Mai10

Jogar as cartas (Morte – 13)

Publicado por Mil Razões...

 

Eu gosto muito do meu avô. Da minha avó também. Mas com o meu avô é diferente: brinca comigo, não ralha, leva-me à escola, vai lá buscar-me ao final do dia… É diferente. Mas eu agora estou de férias.

 

Ontem, depois do almoço, o meu avô esteve a ensinar-me as jogar as cartas. Depois foi deitar-se, para descansar. Ao final da tarde levantou-se; eu ouvi-o a tossir.

De repente, e não sei porquê, a minha avó ficou muito nervosa. Por vezes ela enerva-se, por esta ou por aquela razão, mas nunca a vi assim tão nervosa, mesmo aflita. Mandou-me ir brincar para o rés-do-chão e não subir. Depois telefonou para a minha mãe e para a minha tia. Chorou a falar com elas, que eu bem a ouvi. Disse-lhes que era necessário avisar os meus tios do Porto e depois avisar toda a gente. Percebi que tudo aquilo tinha a ver com o meu avô, que alguma coisa se passava com ele, mas não entendi o quê. Estaria doente? O meu avô nunca estava doente – só tinha frio. Como ela estava muito nervosa e a chorar, achei melhor não lhe desobedecer e fiquei na sala; mas não tinha vontade de brincar.

Quando o meu tio Luís, irmão da minha avó chegou, foi logo lá para cima e eu continuei sem poder subir.

 

Quando os meus pais chegaram já era noite. A minha mãe vinha a chorar e o meu pai parecia zangado, mas sem ralhar. Depois disseram que o avô tinha morrido. Morrido!? Como o Aniceto, a tartaruga que a minha avó me tinha dado num Natal? Ou como o Rex, aquele cão que a minha avó tinha ao fundo do quintal? Desse eu tive saudades.

Eu queria ir para o pé do meu avô; apetecia-me encostar a ele. Pedi à minha mãe, mas ela não deixou. Disse que tinha de ficar em baixo; ele ficaria em cima. Mas ele ia ficar sempre lá em cima e eu sempre sem poder subir? Mas a minha cama estava lá em cima… como iria dormir?

Já era muito tarde quando chegaram os meus tios do Porto. Eu estava a dormir, mas ouvi-os chegar. Esses também foram lá cima, onde estava o meu avô. Todos iam lá cima, menos eu. Porquê?

 

Esta manhã, bem cedo, já todos estavam acordados. E chegaram uns senhores num daqueles carros que transportam os mortos. Foram todos lá para cima. O meu pai não parecia tão zangado e eu disse-lhe baixinho, ao ouvido, que gostava de ir lá acima, ver o avô. O meu pai não respondeu. Olhou para o meu tio do Porto e perguntou se deveria deixar-me subir. O meu tio disse que sim, mas que tivesse cuidado para ver como eu reagia. Mas eu não tenho medo do meu avô – mesmo que ele esteja morto.

E subi, com o meu pai.

O meu avô estava muito quieto com as mãos em cima da barriga, deitado num caixão, pousado no chão. Estava com a cara mais branca, mas parecia estar a dormir. Teriam a certeza de que estava morto? Fui até ao pé dele e toquei-lhe na mão. Estava muito fria.

Depois aqueles senhores pegaram no caixão e levaram-no. Para onde iriam?

 

Quando as aulas recomeçarem, quem irá levar-me à escola? Apetece-me jogar as cartas com o meu avô, encostar-me a ele enquanto ele me ensina a jogar.

 

Fernando Couto

 

21
Mai10

Na literatura infantil também se morre (Morte – 12)

Publicado por Mil Razões...

 

Em todas as culturas do mundo o conto serviu propósitos diversificados. Daí que o interesse por este, ao longo dos tempos, se tenha manifestado nas mais distintas áreas do conhecimento.

O conto estuda modelos textuais, formas primitivas de viver, estabelece regras de funcionamento da narrativa, explica conflitos humanos… Em suma, o conto levanta questões que dizem respeito a todos nós. Fala-nos de aspectos da vida social, do comportamento humano, do comportamento emocional (amor, ódio, raiva, amizade) e, frequentemente, apresenta-nos contrastes que Bettelheim (1998) tão bem retratou: Bem – Mal; Luz – Trevas; Saúde – Doença; Noite – Dia.

A criança que ouve contos organiza melhor o discurso na mente e, consequentemente, cria e desenvolve estruturas que lhe permitem poder vir a compreender qualquer tipo de narrativas, por exemplo, a sua própria narrativa…

Ora, os contos, têm como base a palavra. Através dela colocam-se, perante as crianças, os fragmentos de vida, do mundo, da sociedade, do ambiente imediato ou longínquo, da realidade alcançável ou não, da própria fantasia.

Eu acredito que ao falarmos sobre a morte podemos fortalecer relações com os outros, como também podemos valorizar mais a própria vida e aceitar o que o destino nos reserva, e do qual não podemos fugir.

 

Mas, quem quer falar sobre a morte com crianças? A resposta provavelmente será NINGUÉM. Os adultos querem proteger as crianças dessas experiências dolorosas e evitar ter essas conversas.

A inevitabilidade da morte é uma condição da qual não podemos fugir, por isso evitar este assunto poderá dificultar, na criança, o entendimento dela sobre outras situações da vida. Isso não quer dizer que se fale disso o tempo todo, mas que se deve aproveitar a sua ocorrência para abordar a questão, sem exageros de protecção, até porque a criança, ao longo da sua vida, irá deparar-se com algumas perdas (entes queridos, animais de estimação…).

Muito do que aprendemos nas nossas vidas depende, por vezes, do que nos contam. De facto, contar histórias é uma forma de divertir as pessoas, de educar, de dar a conhecer, auxiliar, sensibilizar, organizar sentimentos, enfrentar tabus e medos…

Mas como é que a MORTE surge na nossa Literatura Infantil?

 

Através da Literatura Infantil pode-se lidar com todo o tipo de sentimentos, tanto da parte de quem conta a história como pela própria história em si, que pode narrar algo com que a criança se identifique.

Acredita-se que as crianças que ouvem contar histórias que abordem estas temáticas têm mais facilidade na compreensão e na aceitação da situação vivida, pois promove uma certa empatia e aproximação entre o adulto e a criança.

O tema da morte está presente em toda a Literatura Infantil. É raro o livro para crianças que não fala sobre esta temática, senão vejamos:

 

BRANCA DE NEVE E OS 7 ANÕES

Quem morre? Branca de Neve, e só renasce com o beijo do Príncipe…

 

BAMBI

Quem morre? A mãe de Bambi e o pai…

 

MOGLI  (“O LIVRO DA SELVA”)

Quem morre? Os pais de Mogli…

 

A CAROCHINHA E O JOÃO RATÃO

Quem morre? O João Ratão…

 

PETER PAN

Quem morre? O Capitão Gancho…

 

…e a lista continua…

 

Aproveitem e valorizem cada segundo do vosso tempo, já que o destino está traçado, e da morte ninguém jamais poderá fugir…

 

Susana Quesado / Maria Graça Sardinha

 

18
Mai10

Deixa-me chorar-te… (Morte – 11)

Publicado por Mil Razões...

 

- Sabes, o pai morreu e foi para o céu e está lá em cima, com as estrelas, a sorrir.

- Mãe?

- Sim, filho?

- Dás-me um telescópio no Natal para eu poder ver o pai nas estrelas?

 

- Filha, o pai morreu mas vai estar sempre no teu coração…

- Mãe, eu não o quero no meu coração. Eu quero é que ele me leve à escola…

 

Pode ser extremamente complexo explicar a uma criança o desaparecimento de um ente querido quando, até nós adultos, temos tanta dificuldade em o aceitar ou superar. Sabemos o quanto a nossa vida se altera após essa perda, o quão difícil é preencher o vazio e respirar fundo. Quando isto acontece com uma criança, ela sente-se desprotegida, insegura, sobretudo se perde o pai ou a mãe que são os seus pontos de referência, o seu porto de abrigo.

A criança (especialmente em tenra idade) não entende que a morte é irreversível. Todavia, é preciso que saiba que aquela pessoa não vai voltar. É preciso que possa chorar e partilhar a dor e a saudade, que possa falar dos seus sentimentos, que se sinta acarinhada e compreendida.

É preciso que a verdade que lhe chega não a destrua, e que seja realmente a verdade. “A mãe ainda está no hospital”, “O pai foi viajar e ainda demora a regressar”, “O avô foi para o céu”, são tudo exemplos do que não devemos dizer, sob pena de levarmos a criança a esperar o regresso da pessoa falecida ou a desejar ir ao seu encontro no céu. As crianças não devem ser excluídas deste processo para que possam aceitá-lo, percebendo que a morte é parte integrante e inevitável da vida. Só depois de iniciado o processo de luto será possível superar e aceitar a perda.

Se a criança ao longo da sua vida foi lidando com outras perdas (a morte de um animal de estimação ou de um avô), estará emocionalmente mais apta para aceitar a irreversibilidade da morte. E, sobretudo para lhe sobreviver, para poder encontrar um sentido na sua própria existência, nos dias que lhe seguirão.

 

Alexandra Vaz

 

14
Mai10

Os combatentes (Morte -10)

Publicado por Mil Razões...

 

A morte é palavra concreta em qualquer cenário de guerra. Sendo a guerra um contexto rico em emoções negativas, são muitos os participantes que as experienciam e as carregam para o resto da vida, com mais ou menos recursos pessoais e sociais para as digerir.

Nós, que todos os dias bebemos informação de diferentes guerras que se espelham pelo globo e vemos a morte com olhos vacinados contra as emoções adversas que esta possa causar, não imaginamos o que será experienciar a morte num cenário tão violento como é a guerra.

O que sentirá um combatente que, com a arma embrenhada nos braços, vê ao mesmo tempo o seu parceiro cair por terra atingido pelo inimigo, enquanto luta pela sua sobrevivência? O que sentirá ao ver-se incapaz de acudir ao colega para evitar a sua morte, porque está sob balas? Qual a sensação de ver a morte diante de si, a escorrer por cada fio de sangue e olhá-la nos olhos de um companheiro? O que sentirá ao atingir também o seu inimigo com as mesmas balas que há instantes retiraram a vida ao seu parceiro? Ódio, vingança, culpa? Quem sabe? Embora guerreiros, diferentes emoções devem sentir quando presenciam a morte de todos os ângulos. Talvez o medo seja o sentimento que esteja sempre presente em cada olhar de guerreiro… ou talvez não… talvez a ausência de si mesmo num momento tão limite seja mais constante.

 

E como será esperar o regresso da guerra, de um filho que poderá nunca mais voltar? Que lágrimas guarda a mãe do soldado depois de tantas derramadas na incessante ansiedade de receber um sinal de vida do seu filho? Qual a consolação de um pai, ou mãe, no heroísmo da morte do seu filho, por uma causa nem sempre partilhada?

Porém, não só de combatentes se faz a guerra. Também de comunidades, repletas de homens, mulheres, crianças. Quem sabe a cor das emoções que se extravasam na alma de uma criança que estremece ao cair de uma bomba tão perto da sua casa? O que será ver os nossos familiares e vizinhos jazendo inanimados, como cenário do dia-a-dia? Que esperam estas pessoas da morte? Alívio? O mesmo medo e assombro que todos nós? Ou um modo de estar na vida? Que esperanças na vida têm estas pessoas alheias aos intuitos dos senhores da guerra?

E por fim temos estes mesmos, os senhores da guerra, que assistem do cadeirão das suas mansões, aos cenários por si montados. Com que emoções estes senhores contabilizam mortes? Indiferença? Qual será o sentimento ao deitar, perante as suas ordens diárias para os milhares de combatentes ao seu comando?

 

A morte é uma realidade física praticamente igual para qualquer ser humano. Pode variar a sua execução, mas a paragem dos sinais vitais acontece do mesmo modo. A realidade psicológica desta, varia de pessoa para pessoa, mas é com certeza extremamente diferente num cenário tão mortal como a guerra.

Aos que sobrevivem a este flagelo, o que lhes resta? Sentimentos de culpa, medos, desesperança, incapacidades. Talvez uma vontade de morrer, num assombro constante de recordações vivas desse pesadelo. Talvez uma vontade de esquecer e ser de novo, de renascer, pelos que devido à morte, já não o podem fazer.

 

Cecília Pinto

 

Porto | Portugal

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