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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

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03
Dez10

Usurpação (Depois da tentativa – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

Nunca senti medo de envelhecer estando contigo. Casámos em segundas núpcias, com meio século de vida. Tu tinhas estado casada, há muitos anos atrás, com um homem que te abandonou, sem uma palavra, poucas semanas depois do vosso matrimónio. Eu tinha vivido tranquilamente, quase duas décadas, com a mãe do meu único filho, mas a morte reclamou-a cedo demais. Temos sido felizes, eu e tu. Tomas conta de mim e, nessa dádiva, fazes-me sentir importante e amado. És uma força da natureza! Não paras por um instante, levas o mundo à tua frente, com força e amor.

 

Já temos mais de setenta anos. Estou quase surdo. Vivo com um cancro na próstata há mais de dez anos, que parece coabitar no meu corpo, sem pressa de me levar. Tu começaste a cair em todo o lado, sem razão aparente. Corremos médicos, ouvimos opiniões e diferentes diagnósticos. Vi-te piorar de dia para dia, assustada, e eu incapaz de te sossegar… Não me lembro que nome esquisito o especialista proferiu mas, trocando-o por miúdos, disse que tinhas a doença do neurónio motor. Lembro-me de ter pensado que não devia ser assim tão grave. Afinal, se temos milhões de neurónios, que mal poderia causar apenas um? Lenta e gradualmente, deixaste de andar, de falar, de mexer parte do teu corpo. Lá em casa, deixamos de poder atender o telefone: eu não o ouvia e tu já quase não falavas… O meu filho, que sempre me excluiu da sua vida, aproximou-se novamente. Fiquei feliz, sabes? Durante anos, supliquei tanto para poder vê-lo e às minhas netas e agora, achei que em face do que atravessamos, ele tivesse mudado. Acreditei que neste momento, particularmente difícil, a família unir-se-ia. E eu precisava tanto, tanto de apoio…. À medida que pioraste, fui percebendo que não tinha força para cuidar de ti. O meu filho e a minha nora sugeriram um Lar… um sítio onde fosses bem cuidada e eu pudesse estar ao teu lado. Não aceitei a ideia com facilidade. Não queria sair da nossa casa, não queria que te sentisses perdida e usurpada… O meu filho libertou-me do peso de algumas decisões; assumiu-as e fez tudo o que podia: pediu-me que assinasse alguns papéis que o tornassem meu representante, para eu poder estar contigo sempre que possível. Visitamos alguns lares, não gostei de nada do que vi: desumanos, caríssimos, destituídos de carinho e dignidade. Não te queria num sítio assim…. Depois de uma busca incessante, e por sugestão da minha nora, fomos para Gaia. Segundo ela, não havia melhor do que aquilo. Pediram-nos tanto dinheiro…. Felizmente, fomos poupados e tínhamo-lo.

 

Disse ao meu filho que ia manter a nossa casa. Que me saberia bem ir lá com frequência, cuidar do jardim, cheirar as nossas coisas…. E que, se não te desses bem no lar, te trazia para casa novamente e arranjava apoio domiciliário. Mereces o melhor. Fizemos a mudança. Instalamo-nos no lar, nós e o inferno…. Não pudemos ficar juntos. Adormecemos e acordamos juntos durante mais de vinte anos, mas ali fomos impedidos de o fazer… Custou-me tanto e sei que a ti também… Tentei arduamente adaptar-me mas cada dia que passava era pior do que o anterior. Tu choravas angustiada, detestavas aquilo. Entrei em colapso….Tomei a decisão de voltar para casa. Afinal, ainda tínhamos dinheiro suficiente para eu poder cuidar de nós, com ajuda. Para te poder devolver a dignidade que merecias até ao fim da tua vida. Pedi ao meu filho os papéis das nossas contas bancárias, os documentos e tudo que ele havia guardado. Ele evitava atender o telefone, recusava-se a estar comigo. Ficou muito chateado quando lhe comuniquei a nossa decisão de sair do lar… Fui ao banco. Não temos um cêntimo…. A minha nora encarregou-se de deixar as contas a zero, “para ajudar os velhinhos” que nunca viram esse dinheiro… Fui a nossa casa, está vazia…. Segundo os vizinhos, no mesmo dia em que nos deixaram no lar, o meu filho, a sua mulher e as suas filhas, esvaziaram-nos a casa, levando tudo o que lhes interessou. Não temos nada, mulher, nada. Tantas vezes me avisaste. Tantas vezes me pediste que tivesse cuidado, que resguardasse o meu coração, porque o meu filho e a minha nora me iriam magoar sempre que eu deixasse…. Sabes o que me custa mais? Ter deixado que te magoassem a ti também.

 

Estive contigo ainda há pouco. Já não dizes nada, já mal te mexes. A mobilidade que ainda te resta de um braço, permite-te – tentar -  escrever, devagarinho… Disse-me o médico que vais perder o controlo completo do teu corpo, até ficares presa, absolutamente consciente, dentro desse corpo que não te obedece, até ao fim… Não fui capaz de te dizer que não tínhamos um cêntimo nem em que estado estava a nossa casa… não fui capaz de te dizer que sempre tiveste razão… que me amaste de uma forma pura e humana e eu retribuí, falhando contigo tremendamente… Dei-te um beijo e deixei-te a dormir. Andei desnorteado pelas ruas, dei por mim aqui, nesta ponte nova, mais uma que une Gaia ao Porto. Sinto-me um farrapo humano… Já nada me resta e não suporto a ideia de te perder também. Perdoa-me por não ter sido capaz de cuidar de ti como cuidaste de mim, até a saúde te faltar… Brevemente, estaremos juntos, num lugar onde te verei apenas sorrir e ser feliz. Sem dor, sem doença. Espero lá por ti, sou demasiado cobarde para ser o último a partir. Por isso agora, sucumbo. Vou mergulhar no Douro e deixar que a água me leve e lave todos os meus pecados…

 

Alexandra Vaz

 

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