Preparativos e celebrações (Morte – 4)
A palavra ritual, tal como está descrita no dicionário, vem da palavra rito que quer dizer, sucintamente, “ordem prescrita das cerimónias que se praticam numa religião” (in http://www.priberam.pt/DLPO/). Nesta linha de raciocínio, falar dos rituais da morte implicaria falar das celebrações levadas a cabo pelas diferentes religiões aquando da morte de alguém, como é o caso da “câmara ardente”, típica do catolicismo. Neste caso particular, a família “faz turnos” em redor do corpo, enquanto diferentes pessoas, mais ou menos próximas, vão fazendo fila para dar “os sentimentos” e oferecer flores ornamentais. O ambiente é pesado e silencioso e os olhares são de pena. A cerimónia dura o dia todo e o corpo é enterrado no dia seguinte.
Como não me identifico com este tipo de ritual desactualizado e penoso, e como considero que os rituais da morte vão muito além daquilo que são as celebrações religiosas logo após morte, vou abandonar a definição mais convencional.
Pensar em rituais da morte, na minha perspectiva, implica pensar em todas as celebrações/acontecimentos que mais directamente se associam à morte, quer ocorram antes, durante ou após a mesma, sejam desenvolvidos pela família, pelo próprio ou por amigos. E falar em morte implica ter em conta todas as suas formas: velhice, doença, acidente, suicídio, homicídio, etc.. Deste ponto de vista, há todo um leque de situações passíveis de serem incluídas na definição de rituais da morte.
A filha que vai todas as semanas à campa dos pais e dos sogros lavar a pedra mármore e ornamentá-la de flores, executa um ritual de morte. A viúva que veste preto anos a fio, usa as duas alianças e guarda os pertences mais significativos do marido perto da cama, executa um ritual de morte. A mãe que perdeu o filho e que, passados anos, mantém o quarto do menor intacto para manter a sua memória viva, também executa um ritual de morte. Os amigos que se reúnem para jantar no dia de aniversário do amigo falecido e relembram os momentos passados, também executam um ritual de morte.
E o doente cancerígeno, apenas com 2 meses de vida, sem hipótese de recuperação, que começa a decidir o destino dos seus bens, tenta realizar os últimos desejos e despede-se de todos os seus familiares. Ou o idoso, proprietário de um jazigo, que morre após meses na cama, porque desistiu lentamente de viver e cujo único ritual era pedir a Deus, todos os dias, que o levasse. Ou o suicida, que planeia com meses de antecedência a sua morte – a escolha do local, o método, as palavras finais num papel – celebrando-a pouco a pouco como uma conquista. Parece-me que todos estes comportamentos, cujo único motor da acção é a morte, devem ser considerados rituais de morte já que estão directamente relacionados com a mesma.
A morte faz parte da nossa vida. E todos nós executamos rituais de morte pois todos nós conhecemos alguém que morreu, pensamos na nossa morte e na morte daqueles que mais amamos. E os nossos rituais, tais como os rituais que descrevi, assentam fundamentalmente em um de dois conceitos opostos, o da aceitação e o da negação. Nesta linha de raciocínio, com qual dos conceitos te identificas quando lidas mais directamente com a morte?
Ana Gomes