Depois da morte (Morte – 5)
- “Deus morreu, Marx também e eu mesmo já não me sinto lá grande coisa.” Não me parece interessante continuar a falar de um tema que se esgota em si mesmo. Deixemos as especulações sobre a morte para os fracos e para os devaneios dos românticos decadentes.
Álvaro procurava assim pôr termo a uma conversa na qual não via qualquer utilidade. Considerava que o tempo gasto a falar sobre a morte era tempo roubado à vida. Usava a frase de Maio de 68 como um semáforo vermelho e normalmente intimidava o interlocutor.
- Pois para mim, esse é o “tema”. - enfatizou Luís - Aquele que dá sentido à vida ou, se quiseres, a morte como princípio da verdadeira vida. Se não acreditasse nessa vida para além da morte, num propósito, num desígnio, restar-me-ia o vazio, o nada a que remetem as tuas palavras. Reduzir o sentido da vida à nossa passagem terrena, seria demasiado pouco. O Deus de que falo, ilumina a minha vida.
Álvaro pensou: “Olá, hoje temos luta, vou ter de me aplicar”.
- Não remeti para o nada. Se o nada pudesse existir, já seria alguma coisa. Remeto para o fim das nossas vidas terrenas e para a recusa de uma outra vida nascida da imaginação. O argumento que utilizas, baseado no conforto e em Pascal, não me convence. Não se acredita por decisão. E se tal fosse possível, não seria aceite pelo teu deus, que certamente preferiria o céptico verdadeiro ao utilitarismo do crente.
- Mas então, em que é que tu acreditas, se recusas Deus e o nada?
- Acredito que fazemos parte do cosmos. Acredito que as partículas de que me componho surgirão mais tarde fazendo parte de outros conjuntos. Posso imaginar-me em parte numa pedra, em parte numa árvore e ainda na unha de um orangotango e por aí fora. Mas, apesar de tudo, prefiro ver-me a integrar uma flor, a fazer parte de um lago, de uma estrela errante e, como ainda sobram bastantes partes, a completar o olhar de uma criança que, junto de um lago, contempla o firmamento.
- Um romântico, afinal! – disparou Marta com malícia.
- Assumido, mas não decadente…
- Nada do que conhecemos tem o aspecto de ter sido concebido, a menos que o tenha sido. Esta obediência a um desígnio só nos pode conduzir a Deus – apressou-se Luís, receando que os remoques desviassem a atenção do tema.
- Não devias ter parado em Tomás de Aquino. Devias ler Darwin – replicou triunfante Álvaro, que gostava de exibir os seus conhecimentos e descobrir os nomes dos autores, em especial quando a citação não era explícita. Era uma outra forma de intimidação, mais sofisticada.
- À medida que a ciência avança, aumenta o reconhecimento de que sabemos menos do que pensávamos saber antes.
- Sabemos cada vez menos, sobre cada vez mais. E se existir um deus, mas não existir vida depois da morte? E se houver vida depois da morte mas deus não existir?
Quanto mais receamos a morte, mais difícil ela se nos afigura, já que se alimenta dos nossos medos, tornando a morte mais dolorosa do que a dos animais, que nada sabem. Do que realmente temos medo não é da morte, mas sim da vida que acaba. Mas como seria insuportável se fossemos condenados à vida eterna na terra! Vivamos a vida como uma oportunidade que não se repete. Encaremos a morte como uma dádiva para que outros possam viver. Aceitemos a morte como um sono. Um sono eterno.
- Recusas não só Deus, como toda a metafísica…
Álvaro apercebeu-se que a conversa caminhava para o fim e não resistiu:
- “Come chocolates, pequena; come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”.
- Fica com o teu homónimo que eu fico com a fé no meu Deus, que é mais doce que o chocolate e mais belo que o teu lago.
José Quelhas Lima