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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

25
Fev19

Bom dia. Como estás? (Simplicidade – 3)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Woman - Free-Photos

 

Aguardava mais um dia pacato e monótono como todos tinham sido até então. O despertar tornara-se numa obrigatoriedade que se forçava por cumprir todas as manhãs, em pleno contentamento com o que existia no agora, fruto do que construíra no passado. E assim seria esse dia, não fossem aquelas quatro palavras inesperadas a colorir o amanhecer.

“Bom dia. Como estás?”

 

Levantou-se, executou a rotina habitual e deixou que os seus olhos percorressem aquelas letras vezes sem conta até um sorriso se desenhar nos seus lábios.

“Bom dia.”

 

Não estava mais só. Havia alguém no outro lado da linha, entre quatro paredes como ela, quiçá, que dedicara alguns segundos ou minutos do seu tempo a essa partilha, a esse reconhecimento, e só por isso, este já não seria um dia como os demais. Ia ser mesmo um bom dia, independentemente do que se passasse.

“Como estás?”

 

Acostumara-se à solitude propiciada pelas circunstâncias a que não conseguira fugir, às inevitabilidades que fizeram parte do seu caminho, mantendo sempre a cabeça erguida enquanto o seu corpo se movia adiante. E agora recebia o retorno da sua coragem e valentia, do seu inesgotável otimismo que por vezes se quebrava, nunca se extinguindo, disfrutando dessa nova força e energia que se apoderaram do seu espírito, dando um novo fôlego à esperança.

“Bom dia. Como estás?”

 

Leu uma vez mais, espantando-se com o poder de meras palavras e dos pequenos gestos como este. Era inegável a magnitude dos detalhes, capazes de gerar os maiores impactos assim, quase sem querer.

 

“As coisas mais simples da vida são as mais extraordinárias, e só os sábios conseguem vê-las.”

Paulo Coelho; “O Alquimista”

 

Como tinha razão este sábio cujas histórias viajaram e povoaram mundos. As suas palavras evocadas quase por instinto comprovavam as verdades empíricas que lhe eram reveladas nas suas vivências.

Seguiu com as horas ocupadas, sentindo na pele a diferença proporcionada pela simplicidade, sabendo-se, de igual modo, um pouco mais sapiente por ter constatado essa verdade.

É que de facto são os detalhes que passam despercebidos na correria quotidiana, aqueles cuja soma se engrandece e se torna percetível no conjunto de dias a que se chama vida. São eles que podem marcar e determinar a maior das diferenças. Por isso, repetindo a intenção, logo se apressou a responder:

“Bom dia. Muito obrigado pela tua mensagem. Agora estou bem, ao lê-la. E tu, como estás?”

 

E esse gesto repetido manteve-se, multiplicando-se, trazendo dia após dia um novo ânimo ao seu despertar.

 

Sara Silva

 

22
Fev19

Beleza e coração aberto (Simplicidade – 2)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Girl - Free-Photos

 

Estou um bocadinho cansada de pessoas que exibem a sua sabedoria, que exibem o seu trabalho, que exibem só o que de melhor fazem, que exibem o seu exterior. Sinceramente tenho dificuldade em perceber! Não há necessidade.

Perceber a simplicidade é difícil e não é para todos. Na sociedade em que vivemos, a beleza que a simplicidade transporta nem sempre é percebida. Às vezes até é mal interpretada: “Aquela não é formal, não veste como a maioria das pessoas. É estranha”.

A simplicidade não traduz o conhecimento e as capacidades de cada um. É uma forma de estar na vida. A pessoa vê o mundo de forma transparente e vive-o de forma tranquila. Não precisa de ostentar; não precisa de se vangloriar. Ouve-se a si própria e não sabe ser de outra forma.

Pessoas simples são pessoas simples, e o que eu penso é que não sabem mesmo ser de outra forma, mesmo que lhe digam que podem ser prejudicadas e mal interpretadas por isso.  Ainda bem que não conseguem ser de outra forma, com todas as consequências que isso pode trazer, porque a beleza e a sabedoria estão aqui. 

 

Mas como lidar com pessoas que, perante a simplicidade, a discriminam?  Digo que, provavelmente, devem apelar à sensibilidade dos seus olhares e expandir horizontes, e aceitar que pessoas simples são, na sua maioria, pessoas belas, de coração aberto, e muitas vezes muito interessantes sob vários pontos de vista. Só não precisam de o dizer.

Conheço pessoas cuja simplicidade é uma das suas caraterísticas. São tão interessantes e aprendo tanto com elas!

 

Ermelinda Macedo

 

18
Fev19

Pingos (Simplicidade – 1)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Drip - Free-Photos

 

Mais um dia de chuva e uma ventania brutal.

Acordo e penso que o treino será engraçado. Talvez até uma verdadeira aventura!

Mas será bom fazer algo diferente e que apele aos instintos de sobrevivência. Que apele ao simples desejo de chegar ao fim com sucesso e, de preferência ileso.

Talvez seja melhor adiar por umas horas e adiantar trabalho. Treino depois...

 

Ui... A chuva agravou e o vento está a levantar tudo o que pode.

Treinar será ainda mais interessante assim...

Porque razão não fui correr como é habitual? É sempre a primeira coisa que faço... Hoje não porquê?

Esta simplicidade das rotinas diárias é tão eficaz... Lá tive que mudar hoje. Logo hoje que os céus decidiram desabar com tudo o que têm.

Penso agora que, no meu mais íntimo, desejo por algo mais do que um dia simples. Deixei a mente escolher em vez de obedecer à rotina. Esta mesma mente que agora teima em convencer-me que ir correr à chuva e ao vento me vai deixar divertida... Será ela louca? Serei eu dependente dela?

Afinal não é assim tão simples... Essa dita simplicidade.

 

Sónia Abrantes

 

11
Fev19

Um, dois... amor e depois (Urgência – 12)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Little - Barrie Taylor

 

“Vou contar até três”.  E a urgência acontece, entrecortada por soluços que agitam pequenas lágrimas e as despenham de uns olhos miúdos, entre rebeldes e apavorados.

 

1...

O dono dos olhos miúdos, uma criança de não mais de cinco anos, sento o peso do ameaçador monossílabo atroar o universo todo. O universo todo é uma coisa enorme, pensa ele. E mesmo assim, não há para onde fugir, no limiar da revolta ou do desespero ou da emergência.  O seu corpo pequeno acusa as réplicas do primeiro trovão, em ondas que se chocam entre si: “luto pelo doce que quero, ou desisto?...”  O tempo parece tomar uma forma estranha, difusa, e, portanto, aos olhos do menino, relativa:  afinal ainda haveria o 2 e o 3, ele sabe, já aprendeu na creche, já é crescido e sábio. Ainda não chegaria já o juízo final – ou se declaravam os vencedores.  Aproveitando um soluço vindo lá das profundezas do seu coraçãozinho cheio de direitos, solta mais um grito de protesto e arrelia, e mobiliza um exército de lagrimazinhas novas: “Eu queeeeeeroooooo!...”. A urgência dele é maior que a da mãe, a julgar pelo arrastar desesperado do verbo “querer”. “Não!”, dizia-lhe, lá de dentro da sua cabeça dorida do choro, a vozinha de um espírito voluntarioso e pérfido, “Tens direito ao doce, já o tinhas pedido quando saíste de casa, a mãe devia ter isso em conta! E portaste-te bem, até ajudaste a empurrar o carrinho de compras! E o doce é barato, e diz na televisão que faz os meninos felizes e tudo!”.

 

2…

Desta vez, até o espiritozinho meio-maligno se assustou, dentro da cabecinha fervente do pequeno. “Bolas, 2, já??... E eu ainda nem sequer dei o segundo berro! Mau, mau, a coisa complica, se o tempo se esgota e eu não uso todas as minhas armas... Olha!, gente a parar à nossa volta!! ...é isso, mais um berro e a coisa toma contornos de crueldade desnecessária contra uma criança inocente, para não falar já em violência!”. E, desta vez, dois gritos estridentes disparam da pequena boca gulosa e voam por todo o hipermercado, assustando até o pó das mais altas prateleiras. Sim, de facto, os olhares que se foram juntando à volta da cena tornam-se um pouco intimidadores para a pobre mãe, até aí exercendo o seu direito de ter razão, sem pressa, nem escândalo.  Um burburinho parece começar a ferver, no caldeirão da gente dona-da-razão. “Oh, coitado do menino, ele está nervoso e a mãe só está a piorar a situação, com aquela atitude de ameaça!”. “Qual quê?, eu dava-lhe era um valente açoite nas nalgas, ia ver se a birra não acabava logo!”. “Credo, a criança é um monstrozinho!”. “Não lhes sabem dar a educação em casa, vêm para aqui dar espetáculos de graça!”. “A mãe é que tem a culpa, com certeza já lhe deu abusos, agora que o ature!”.

Bem, a coisa está feia.  E o menino, de repente, já não se acha dono da eternidade, que o número 3 deve estar a cair-lhe em cima. E o comentário daquela senhora com lábios feitos de linha vermelha muito fina e olhos sem cor, que lha comeram as pestanas postiças, fá-lo parar o soluço propulsor de mais meia dúzia de lágrimas e coloca-o em alerta: “O importante é o amor. E esta mãe não tem amor pelo filho, ela não sabe, mas está a afetar o filho para a vida, expondo-o assim. Estas mães não têm paciência, nem compreensão, só querem saber delas próprias. Se calhar não tem tempo para explicar ao filho porque não lhe dá o doce, depois é esta cena triste... a mães assim, deviam-lhes ser retirados os filhos”... (...) ...Bem.  O espiritozinho dentro da cabeça do menino mexeu-se nervosamente e mandou parar de imediato:  soluços, lágrimas e esperneações. O coração, lá no fundo do seu peito, revolveu-se e reposicionou-se, assim, encolhidinho entre as costelas ainda meio trémulas, ligeiramente virado para a esquerda. Uma dorzinha lá dentro lembrou o menino que a urgência, afinal, não tem nenhuma importância. O importante é o Amor.  E o amor da sua mãe não sabe contar, nem sabe quando acaba o tempo, nem sabe medir o universo, porque ele, mesmo menino pequenino, está sempre entre ela e o universo, muito pertinho, por isso, maior que todo o universo.

A mãe, claro, sabe contar. Mas esquece-se sempre em que número vai, quando os seus olhos se entendem para ela, arrependidos e tímidos. Por isso, o 3 nem aconteceu. Em vez disso, a mãe deu-lhe um doce: um sorriso recheado do melhor amor. E seguiram os dois, empurrando o carrinho de compras, corredor fora, para longe das pessoas que comeram muitos doces em pequeninos e que nunca fizeram birras no supermercado.

 

Teresa Teixeira

 

08
Fev19

Nunca é solução (Urgência – 11)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Woman - Free-Photos

 

O despertador ainda não tocou, mas já acordaste. Ao contrário de outros tempos, não são os minutos a menos de sono que te incomodam, nem o vislumbre imaginário da chatice das reuniões que vais ter ao longo do dia. De facto, o que te assalta é uma incapacidade imediata da capacidade de respirar. O peso no peito é insuportável e assim é, também, a incapacidade de suster o choro.

As tuas decisões e indecisões roubam-te o pensamento lúcido e a capacidade de resolução. Cessaram as soluções viáveis, existindo apenas uma montanha inultrapassável e inenarrável, porque sim, por muito que expliques, ninguém te entende, ninguém sabe como sofres, nem quão profundo é o buraco na tua alma. Porque a tua dor já não é tangível e o domínio do corpo e do real há muito foram deixados para trás, assim como a alegria e o prazer. O único consolo que te resta atualmente é quando te abandona a vigília, e o sono toma de assalto as tuas horas, agora maravilhosas. Contudo, adormeces sempre com o medo que a realidade invada o onírico, e então, até esse refugio foi contaminado pela tua dor e desespero. E esse torna-se o teu núcleo, o teu ser. A ansiedade e a angústia são o teu par, tornam-se o teu ser. Não reconheces o teu âmago e anseias a cada momento por uma explicação. Algo que te diga quem és e o que se perdeu. E como podes voltar a trás. Porquê? Que fiz eu para merecer tal sofrimento? Porque sinto o que sinto e porque já não sinto o que outrora sentia? E talvez, numa tentativa lógica de voltar a sentir, cortas-te. Uma e outra vez. Um braço serve, talvez os dois. Mas depressa te apercebes que não é solução. Nunca é solução. São apenas as cicatrizes visíveis da urgência da saída que não encontras.

 

Rui Duarte

 

04
Fev19

A procura (Urgência – 10)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Man - Silvia & Frank

 

… “Chamem as tropas aquarteladas na província

Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva

Todos. Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências

O perigo justifica-o” …

 

Terá sido a esta altura que fiquei presa ao ecrã da televisão. O apelo, com carácter de urgência, despertou-me curiosidade, mas também inquietação.

As imagens, a preto e branco, mostravam um homem e uma mulher que corriam assustados, perdidos por ruas estreitas e vazias. Não percebia porque fugiam e de quem se escondiam, na verdade, eu nada percebia do que via na televisão, mas sentia-me arrebatada. Era a hora do jantar, o bulício do restaurante e o ruído inarmónico de talheres e pratos abafavam a voz que lia o comunicado de carácter urgente.

Inesperadamente, a sala silenciou-se. Não foi combinado e tão pouco intencional, foi um daqueles momentos em que ninguém tem nada para dizer e o silêncio cai. Pareceram uma eternidade, no entanto, quão breves e curtos foram esses segundos que nem chegaram para ouvir a razão da urgência na captura daquele casal em fuga! Mas o caso devia ser muito grave porque ainda pude ouvir na caixinha mágica:

 

 … “Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais

a inviolabilidade do domicílio a habeas corpus o sigilo da

correspondência” …

 

O silêncio incomoda e é urgente preenchê-lo. Recomeçaram as conversas ao estilo rococó que é o mesmo que dizer, conversas superficiais e desorientadas, sem importância. E risos. Muitos risos, indiferentes ao drama do País e à desgraça do casal em fuga.

A dada altura, a televisão emudeceu e a imagem era um granulado nervoso e acinzentado.  Esteve assim até que, como era comum na época, apareceu o aviso:

“Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos.”.

A emissão retomou com anúncios publicitários. Sobre o homem e a mulher não deram mais notícias.

Lamentei o imprevisto e enfureci-me contra os desconhecidos que me impediram de seguir a história apaixonada do casal em fuga.

Não estabeleci como urgência descobrir o desenlace dos dois fugitivos, mas por vezes assaltava-me a curiosidade de saber que rumo tomaram. Seriam reais ou ficcionados? Ainda tentei descobrir que programa era aquele e recolher informações sobre a história, mas não encontrei ninguém que soubesse do que eu falava.

Por essa altura, aconteceu o 25 de Abril. Refiro-o, porque com este acontecimento chegaram novidades expressas livremente. A nível das artes então, foi um desabrochar lindo de acompanhar. As livrarias encheram-se de novos autores, as rádios passavam músicas até então desconhecidas, a televisão repunha programas anteriormente censurados. E, foi assim que numa noite, revejo novamente na televisão a história do casal em fuga. As imagens eram de outro ponto da história, mas reconheci-as de imediato. O Mário Viegas lia o comunicado que denunciava porque era tão urgente capturá-los.

 

… “beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade noturna

É preciso encontrá-los. É indispensável descobri-los

Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater

É possível que cantem

Mas defendam-se de entender a sua voz. Alguém que os escutou

deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de

lágrimas” …

 

Só consegui entregar-me à paixão das palavras ditas quando venci a surpresa e o espanto do reencontro. Não ouvi desde o início, mas tinha decorrido tanto tempo desde a primeira vez que tomei conhecimento daquela história, que não podiam estar a falar de um facto real, mas dum belíssimo texto ficcionado. Precisava de anotar o nome do autor e o título da obra, era imperioso adquirir o livro, tinha urgência em saber como começava e acabava a história dos dois amantes. Mas quê, a ficha técnica deve ter passado no início, que eu não vi, e o poema não foi dito até ao fim. Mais uma vez a história me escapou. Seria exagero afirmar que isso condicionou os meus dias seguintes, mas sim, empenhei-me na procura com a única informação que dispunha – um texto lido, na televisão, pelo Mário Viegas, sobre um homem e uma mulher que se amavam. Sem êxito.

Um dia entrei na redação do extinto jornal “O Diário” e vi colado na parede, em papel amarelecido, o extrato de um poema. Reconheci-o, era a “minha” história. Começava com o título e terminava com o nome do autor. Finalmente! Conhecer os personagens que anos antes tanto me intrigaram já não era uma urgência, mas uma emergência. Saí direta a uma livraria. O que encontrei, desconcertou-me, naquela como em todas as outras, nos escaparates destacava-se a “Invenção do Amor” do Daniel Filipe. Ainda hoje, passados tantos anos, mantenho por perto esse pequeno livrinho.

 

… “Prevê-se para breve a captura do casal fugitivo (Mas um grito de esperança inconsequente vem do fundo da noite envolver a cidade au bout du chagrin une fenêtre ouverte une fenêtre eclairée)” …

“Invenção do Amor”; Daniel Filipe

 

Cidália Carvalho

 

01
Fev19

Só hoje (Urgência – 9)

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Foto: People - StockSnap

 

Faz hoje vinte e quatro anos que o meu pai morreu. Não consigo passar este dia sem me lembrar deste facto, mesmo que o tempo avance e se preencha com tantas outras datas e memórias. Faz hoje anos que perdi alguém que me amou, que mo disse, que me fez sentir especial, ainda que por um curto espaço de tempo. Para quem nos conhece e acompanhou a nossa história de vida, esta minha afirmação poderá parecer insana. Em abono da verdade, não posso enaltecer as qualidades paternas ou conjugais do meu pai que, escravizado pelo álcool, quase nos destruiu. Durante muitos anos, a seguir a cenas dantescas, fugíamos e refugiávamo-nos em casa de algum parente (chegámos a mudar de país), mas regressávamos a casa para o infernal habitual, depois das lágrimas do meu pai e a promessa velada de que “agora ia ser tudo diferente”. Não foi um bom pai, não foi um bom marido. Quando a minha mãe teve coragem de o deixar definitivamente, passei três anos sem sequer lhe falar. Fugia dele quando ele aparecia na escola ou na rua, vivia com medo até da minha própria sombra. Aos 16 anos senti que tinha de o enfrentar e perceber o que sentia por ele, para além daquele terror tão absoluto. Sabia que não podia crescer naquele espaço, dentro de mim, de tanta raiva, em permanente estado de vigília, dominada pelo medo.

 

Um belo dia, comprei, com a ajuda de braços de um amigo, uma grade inteira de cerveja. Ajudou-me a carregá-la até à porta da casa do meu pai e fugiu antes que ele tivesse tempo de a abrir, depois de me dizer que eu devia ser maluca ou masoquista para o procurar. As minhas pernas tremiam, as mãos suavam, tinha vontade de fugir também, mas não arredei pé. Quando abriu a porta, ficou surpreso pela minha presença. Saudou-me com o sarcasmo que lhe conhecia e proferiu um disparate qualquer que ignorei. Apontei para a grade de cerveja (bebida de eleição do meu pai e que ele consumia em doses industriais, bem como os bagaços) e disse-lhe:

- Esta noite, eu e o pai, vamos beber isto tudo. Pode ser que eu hoje perceba como é que esta porcaria foi mais importante do que a mãe, eu e o meu irmão na sua vida.

Surpreso, deixou-me entrar. Enquanto caminhava para a sala, ainda com as pernas trémulas, pensava no quão difícil era estar ali, naquele cenário onde, durante mais de uma década, fomos espancados quase até à morte. Aquela casa trazia-me o terror de outrora, os gritos, o sangue, a violência física e psicológica que, para nós, foi a normalidade do quotidiano, durante demasiado tempo.

Nessa noite, estivemos sentados na varanda, bebemos, falámos. Pude, pela primeira vez, ver o meu pai com outros olhos. Descobri que, por baixo de tanta raiva, de tanta frustração, estava um homem assustado, frágil, vulnerável. Não falámos diretamente do passado, mas a dada altura, o meu pai perguntou-me se era possível perdoar coisas já idas, se eu era capaz de perdoar. Disse-lhe que não era Juíza, Deus ou qualquer outra entidade com tal poder, para criticar, julgar, absolver ou condenar. Disse-lhe que gostava dele, apesar de todos os pesares, que percebia agora que tinha o melhor dele em mim (o amor pelas palavras, pela leitura e pela escrita, o humor mordaz, a rapidez de pensamento) e que lamentava que a vida lhe tivesse, precocemente, ceifado o caminho. Perguntei quem o tinha magoado tanto para ele nos ferir com tanta violência. Chorou como um menino, mas não me respondeu… Não consegui abraçá-lo, não sabia como fazê-lo, mas permaneci ao seu lado, em silêncio, e partilhei as suas lágrimas.

 

Naquele momento, constatei que eu, a minha mãe e o meu irmão teríamos de viver com aquelas memórias aterradoras, sim, mas o meu pai tinha o pior dos castigos: viver com o que nos tinha feito, até ao último dos seus dias. Não podia imaginar nada mais triste do que ser quem ele era, nada podia ser mais punitivo do que carregar aquela mágoa: ser, simultaneamente, a sua maior vítima e o seu próprio carrasco. E, naquela varanda pequena, de madrugada, com aquele homem ao meu lado, subjugado pelo peso da culpa, do remorso e da vergonha, soube que nem o meu pai conseguiria odiar.

Essa noite salvou-nos. Nunca mais pude apreciar uma cerveja, é um facto, mas o balanço final era claramente positivo. Durante os (quase) quatro anos seguintes, apesar do alcoolismo crónico, tive o pai que nunca havia tido: doce, carinhoso, orgulhoso de mim. Nunca mais foi violento, física ou psicologicamente. No único dia em que ousou levantar-me a voz, berrei mais alto do que ele e ele calou-se. Disse-lhe:

- Afinal o pai é um covarde como os outros. Só ostraciza quem treme de medo. Pois eu não tenho medo, já não. Acabou!

Olho no olho. Firmeza na minha voz. A primeira e última vez que precisei de o fazer.

Desse dia em diante, substituímos os gritos por gargalhadas e os anos passaram demasiado rápido. Na verdade, não podemos parar o tempo ou dizer-lhe que é urgente viver devagar, que precisamos de tempo para sentir devidamente, para absorver e digerir as páginas da vida e as mazelas debaixo da pele. Gostava de ter crescido mais um pouco, mais depressa, de poder vir a ser adulta a sério para o conseguir ajudar. Na minha cabeça, assim que tivesse um emprego “como devia ser”, estabilidade e maturidade, iria ajudá-lo a deixar o álcool. Iria ser capaz de o amar o suficiente para que ele não fosse atormentado pelos seus demónios; imaginá-lo torturado pelos remorsos não era uma imagem que me agradasse. Durante esses anos, fui feliz ao lado do meu pai. Vivi com ele momentos muito bons que, aos poucos, foram varrendo as memórias tempestuosas para um canto esquecido em mim e dando lugar apenas ao amor, ao carinho, ao respeito que sempre havia esperado. O meu pai esteve presente, sobretudo, emocionalmente, em momentos marcantes e decisivos da minha entrada na vida adulta. Sou muito grata por este tempo que nos resgatou e que me permite, ainda hoje, lembrá-lo sem dor e com verdadeira saudade.

 

No dia em que o meu pai faleceu, corri para a sua casa, para lhe dar a notícia da neta que vinha a caminho. Queria tanto que ele conhecesse a bebé que trazia dentro de mim, talvez esta menina o ajudasse a escrever uma nova história, uma sem violência, dor e culpa. Uma que lhe permitisse uma velhice feliz e sanada. Afinal, os seus 52 anos faziam-me crer que tínhamos tempo. Estava tão feliz por saber que seria avô em breve! Faltavam quatro meses para a minha filha nascer quando sepultei o meu pai. Faltava tempo para todos os meus planos, faltava o meu pai na minha vida e, pela primeira vez, senti-me verdadeiramente só. Órfã de amor e de pertença. Tudo me havia sido tomado precocemente. Na urgência dos dias, questionava-me se seria essa a cadência do meu percurso vital. Estava mais perdida do que um caramelo esquecido no bolso de um casaco, na mudança de estação. Assim que me foi possível, coloquei aqueles quatro anos no regaço, para que jamais me escapassem (tudo o resto deixei ir no caixão do meu pai), abracei a dor e a incompreensão e aceitei a inevitabilidade da existência. Um dia atrás do outro.

 

Vinte e quatro anos depois, não sou vítima de coisa nenhuma, continuo profundamente grata. Estou em paz com este passado e deixo que a saudade mais apertada, que hoje sinto, me lembre o bom que pude viver – é aqui que me alicerço, nos dias frágeis, em que a memória me trai… Mas hoje, só hoje, gostava de poder olhar o meu pai nos olhos, apresentar-lhe os três netos lindos que ele tem e, estou certa, vê-lo sorrir, inchado de orgulho e de alegria. Gostava de sentir as suas mãos nas minhas, dizer-lhe que o amo, que sou feliz e dar-lhe o abraço que lhe faltou quando ele era pequenino. Afinal, sei-o agora, precisou de mais amor do que nós.

 

Alexandra Vaz

 

Porto | Portugal

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  153. S
  154. O
  155. N
  156. D

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