Outubro (Solidariedade - 13)
Foto: Flame - Rudy and Peter Skitterians
O ano 2017 marca tragicamente a história do nosso país. O drama dos incêndios, não só mudou, como ceifou demasiadas vidas. Demasiadas casas. Demasiados campos. Demasiados sonhos.
Maria foi uma das pessoas que, naquela noite, naquela pequena aldeia do interior, viu o inferno a aproximar-se a galope. Quando procurou abrigar-se, já sentia o calor do inferno queimar a sua roupa, e a sua pele. Não percebeu no momento, mas sabe hoje que a sua alma foi a parte do corpo que sofreu as feridas mais profundas.
O teto da sua casa ardeu e desabou, deitando por terra o trabalho de 10 anos em França e muitos mais dedicados à lavoura, ali mesmo, nos campos ao redor da aldeia onde nasceu – e para onde sempre quis voltar.
As primeiras paredes daquela casa tinham sido erguidas pelo seu tio-avô, que lha deixou como herança. Quando Maria decidiu fazer obras de ampliação, fez questão de mantê-las intactas e assim honrar a memória e o esforço dos seus antepassados. “Para quê?… se agora andou aqui o diabo à solta e deitou tudo abaixo?”.
Maria vive agora na casa que foi dos seus pais e que se encontrava fechada há muitos anos, por não haver gente na terra que a quisesse arrendar. São cada vez menos os jovens que ali se instalam, e são cada vez mais os idosos que são obrigados a procurar cuidados fora da pequena aldeia, tornando cada vez mais próxima e real a ameaça da desertificação que, também Maria, já ouviu referir nos telejornais.
Não se cansa de dizer que “felizmente, e com a graça de Deus nosso Senhor, ninguém morreu por aqui”. Não se cansa, mas cansa-a a memória daquela noite em que do céu chovia o fogo. Aquela noite em que temeu por si e pelos seus. Aquela noite que não quer recordar, mas que não a larga a cada passo que dá nos terrenos despidos, onde a medo começam finalmente a surgir pontos verdes aqui e ali.
Maria viveu na primeira pessoa o que é isso de precisar da solidariedade. E sentiu-se incomodada com a vinda de estranhos à sua porta, que lhe entregavam leite, massa e enlatados, em troca de pormenores trágicos da noite que queria e precisava de esquecer por instantes.
Foi com a chegada do Vítor e dos voluntários que a ele se juntaram, organizados e respeitadores da privacidade de cada um, que Maria entendeu a verdadeira solidariedade: a que respeita a dignidade de quem, no momento, está numa situação mais frágil.
Impressionou-a como tanta gente chegou àquele cantinho da serra, com luvas nas mãos e botas nos pés, e uma força de vontade tão grande para limpar a destruição “que o diabo ali semeou”. E tocou-a o abraço que recebeu, daquela criança que quis vir ajudar, com o pai, durante as férias de Natal.
Também ela se juntou algumas vezes aos forasteiros. Também ela abriu as portas da sua “nova” casa para servir um lanche, naquela tarde de dezembro em que “fizeram o favor de ir ali abaixo limpar os escombros que ainda estavam caídos para a rua”.
Já passou mais de um ano e já muitas vidas cruzaram a vida de Maria, naquela pequena aldeia onde nem o merceeiro já passava. Mas à noite, quando fecha a janela do quarto e se senta na cama, a rezar a Nossa Senhora de Fátima, faz questão de agradecer a vida de cada um dos que a ajudaram a reerguer a sua. Até mesmo a vida daqueles que invadiram o seu espaço cedo demais, só para ficarem bem nas fotografias. “Cada um dá o que pode, daquilo que tem”, desabafa ela muitas vezes na sua oração.
* Este texto reúne retalhos de vidas atingidas pelos incêndios de 2017, mas não retrata a história de nenhuma pessoa concreta.
HTR