Vou pelos significados “deixar um local” e “afastamento”. Neste momento da vida, não me apetece ir mais longe na definição de abandono.
O afastamento desta vida de alguém querido para outro lugar, para mim misterioso, transforma-se num ato violento para quem fica deste lado e, quem sabe, para quem se afasta. O chão foge, o coração escurece, o peito aperta… a vida deste lado para repentinamente.
Depois, vai-se fazendo um esforço para ocupar a cadeira vazia, para deixar de ouvir a sua voz, para deixar de ver os seus olhos... Inicia-se um exercício de criatividade para levar a vida para a frente. Nunca mais vejo aqueles olhos, porque ninguém da família tem os olhos daquela cor e, também, não conheço ninguém com olhos daquela cor! Era uma característica muito peculiar. Que bonitos que eram! Até essa cor se afastou. Neste lugar, onde tudo continua a mexer, o que lembra são os pormenores que constituem cada um de nós. Nele, são os olhos, as piadas, os pedidos de ajuda, a forma como ocupava o sofá, as declarações de amor e afeto, o presente no sapatinho no Natal quando os filhos eram crianças… enfim… a pessoa que era.
Como eu gostava que esta ida para outro lugar fosse temporária!
Ele não queria abandonar este lado e não queria que nos sentíssemos abandonados. Mas fica um sentimento estranho, porque os seus momentos e os seus pormenores deixaram este local sem aviso prévio… parece um roubo! Vou continuar pelos significados de “deixar um lugar” e “afastamento”. Quero pensar que deixou este lugar, que toda a gente conhece e gosta de frequentar, e que, ainda assim, nunca nos abandonará. Também quero pensar que ele não se sentirá abandonado, porque os que ficaram deste lado nunca o esquecerão!
Espero que estejas bem. Sei que da última vez que te vi estavas um pouco fugidia e distante, parecia que me evitavas ou que não te sentias bem ao pé de mim. Achei-te com o cabelo em desalinho, olhar a vagar no fragor do horizonte, por dentro.
Acho que me disseste que tinhas ficado desiludida com alguém importante. Que essa falta estava marcada em ti, como se falássemos do recorte a tracejado das vítimas de séries de crime. Devia ser mesmo importante esse alguém, nunca mais disseste palavra sobre ele.
As marcas do que já passou ainda doem? Como passas os teus dias?
Ajuda partilhar com quem escute as lágrimas do sentimento ressequido e os gritos, sem interromper. Acho que a dor não se compraz com anúncios de dez em dez minutos, ainda que tenhamos de esperar, por vezes, por quem nos ouve com muito colo.
E a zanga Maria, o que é feito dela? Sei da tristeza que fica um tempo, ali sem nada, a hipnotizar-te. A rejeição também mas e a zanga? Ah sei, é fazer exercício físico, focar no trabalho e carregar no acelerador do carro. Mas sabes Maria, se vires da zanga manda-lhe um beijinho, gosto de a ver, mesmo quando ela é incómoda porque ela pá, ela sabe de coisas que nem eu nem tu desconfiamos.
Bem, esta carta já vai confusa mas era para te dizer que se precisares de alguma coisa diz, nem que seja ir tomar café ou ir para a fila das finanças.
Queria dizer-te que és importante para mim. Para tudo o resto, respiremos.
Do momento de luz ao expoente da criação, tornamo-nos corpo, mas também alma. Agregamos experiências, lições, erros, histórias, gostos e desagrados, na edificação de um “Eu” distinto. E é nessa passagem do tempo que alicerçamos as nossas raízes. Prendemo-nos ao meio que nos envolve, ao conforto construído, ao que e a quem nos faz bem.
Se as fundações se abalam, é o ser inteiro que ampara o golpe, carregando as marcas e as feridas pelo longo e turbulento caminho que se estenderá.
Assim é o desígnio dos espíritos jovens abandonados pela sorte. Dos que crescem nas ruas, sem mão que afague, que proteja. Sem poiso que lhes garanta a segurança do amanhã, porque o próprio presente já é uma incógnita. Será que virá? Será que a vida persistirá?
A inocência do sorriso e da crença é-lhes roubada à partida, sem possibilidade de resgate de uma infância sumida. Os ruídos beligerantes atravessam ritmadamente a atmosfera e é no vazio propiciado pelo silêncio que se expressam os clamores sofridos. Os que ecoam num cântico aflitivo e os que são abafados pela dormência de um ser que já não sente, um ser que já não quer sentir.
Dos gritos às barbáries, perderam-se nas debilidades do ser humano. Desvaneceu o seu encanto, a esperança, a alegria… Miragens de uma vida alternativa, de uma outra realidade que não a vigente.
São órfãos da humanidade, o produto das massas de gente oca que os abandonou em terras impronunciáveis, submergíveis face às superficialidades da contemporaneidade.
Não os esqueçamos. Não os abandonemos. Pela memória e ação se fará a diferença quanto aos que serão o nosso futuro, enquanto (se) sucede o agora. E aí seremos todos membros da família humana.
Hoje acordei e, antes mesmo de abrir os olhos, pensei que seria um bom dia pois a noite foi calma cá em casa, com sonos retemperadores e descansados.
Olho-me ao espelho, já com a cara lavada com água fria e vejo que tudo está bem. Consigo escrever um e-mail de trabalho ainda a tomar o pequeno-almoço, adivinhando um dia produtivo.
De repente, cruzo olhares com o depois e a ideia de que tudo está bom sai a correr. Vejo-a fugir e fico em pânico. Começo a ficar mais nervosa, cada vez mais e mais nervosa e eis que tudo acontece. Tudo à minha volta é um caos, gritam comigo e tento não gritar, mas já vou perguntando “Porquê?”. Por que razão não há um dia em que a ideia de que será um bom dia não me abandona durante esse mesmo dia? Então, tudo acontece...
Se antes estava com boas energias, essas desaparecem e o meu pânico é maior pois convenço-me que nem sequer tinha direito de as ter tido em algum momento. Se conseguia suportar os gritos dos outros, esses mesmos gritos abandonam os seus corpos iniciais e passam todos para mim, sendo invadida por ataques de histeria louca, dos quais tenho consciência e abomino. Abomino-me a mim...
Se antes olhei para o espelho e tudo era bom, esse mesmo espelho mostra-me agora uma cara vermelha da própria raiva de existir, olhos a pedir para nunca mais serem vistos abertos por ninguém, lágrimas a pedir perdão por existir.
A alma quer sair do corpo, mas o racional não deixa. Estou presa em mim mesma, nesta minha neura, nesta minha existência medíocre. A pessoa que sou abandona-me e deixa-me à deriva com esta loucura.
Já consegui deixar todos à minha volta de olhos arregalados, mas que se dane! Sofram as consequências por conseguirem deixar-me assim.
Mas eu gosto tanto deles... Eu que já cá não estou. Eu que fui expulsa do meu próprio corpo para dar lugar à insanidade. Sinto ódio, abandono o amor, aquele que tanto acredito e desejo... Não é opção, mas é uma realidade. Uma estúpida realidade que só a mim diz respeito.
O estrondo de um motor atraiu-lhe o olhar através da janela, instintivamente. Viu um carro que passava na rua lateral ao liceu. Tudo estava bem.
Quando Luís fez o olhar regressar ao interior da sala, a porta tinha sido aberta por uma rapariga que entrava, serenamente, com determinação educada. Todos olharam para ela; não podiam deixar de olhar, atraídos por ela, pelos cabelos castanhos a tocarem os ombros, pela pele clara mas precisamente bronzeada, pela beleza do rosto, pelos olhos magnéticos, pela elegância, pela suavidade dos gestos, pelo sorriso cativante, pelo vestido de verão a terminar pelo meio da coxa. O professor interrompeu o silêncio: “Por favor entre e sente-se, se ainda encontrar uma mesa e uma cadeira livres”. Reposto o silêncio, os olhares continuaram até ao fundo da sala, seguindo aquele corpo que flutuava harmonioso. Pousou na última cadeira, olhou o professor e mostrou de novo o sorriso, doce, que agora a todos dizia que estava tudo bem, que a aula podia continuar. Luís sentiu-se preso àquela rapariga tão bela como nunca imaginara possível, senhora de uma luz que criava todas as cores, que tudo harmonizava.
Naqueles dias a turma tinha crescido até ao limite do espaço da sala, com rapazes e raparigas regressados de uma África agora independente que os rejeitava, ou que eles rejeitavam. Todos tinham lá nascido e crescido, numa natureza diferente, numa cultura diferente, e por isso sentiam-se peixes fora de água, rejeitados, escorraçados, estigmatizados, a tentarem perceber onde estavam, com quem estavam, a tentarem aprender novos hábitos e a criar laços, referências, amizades. Pela forma como ela chegou, pelo seu jeito, só podia ser um deles – uma retornada.
Tornou-se muito longo e vazio o tempo até ao intervalo. Com o toque saíram da sala e, como sempre, caminharam até ao salão polivalente. Luís, sempre tímido, sempre reservado, sobretudo com as raparigas, não tirou os olhos dela. Sem entender como, atreveu-se a abordá-la quando todos a olhavam à distância, disfarçando mal a surpresa, o espanto, a fixação. Aproximou-se. Ao perto ainda era mais bela; era muito diferente de todas as outras raparigas. Atreveu-se e disse-lhe que se chamava Luís, que vinham da mesma sala. Ela respondeu-lhe com um sorriso terno, meigo, carinhoso, irresistível, e continuou: “Chamo-me Ângela. Cheguei ontem de Lourenço Marques e estou aqui hoje, o meu primeiro dia neste liceu. Nunca tinha vindo a Portugal continental”.
Luís não entendia a razão, mas com a Ângela sentia-se à vontade, completamente relaxado, sem medo de ser como era, sem medo de falar. Conversaram todo o intervalo grande e regressaram juntos à sala.
Quando as aulas terminaram - terminavam pela hora de almoço, Luís acompanhou Ângela a casa. Ela, o irmão mais novo e os pais, estavam a viver com os avós que acabara de conhecer. Ficaram a conversar mais um pouco junto ao portão da avó. E depois separam-se até à manhã seguinte quando, bem cedo, Luís chegou ao portão para acompanhar Ângela até ao liceu. O mundo estava todo coberto de cores vivas, de beleza, o ar cheirava bem e tudo era harmonia.
E foi assim durante um mês. Ângela e Luís, Luís e Ângela, sempre juntos, por todo o lado. Nunca ele se sentira assim, tão bem, tão sereno, tão seguro, apaixonado. Adorava tudo em Ângela – a imagem, a voz, o cheiro, a serenidade, o sorriso, o jeito, a beleza. Durante aquele tempo experimentou algo que nunca imaginara ser possível – quando caminhavam pela rua, todos os homens olhavam surpreendidos e invejosos. E sim, era ele que ali estava, ao lado de Ângela, era a ele que eles invejavam.
E uma sexta-feira, quando regressavam a casa, Ângela disse a Luís que era o último dia em que estariam juntos. Na segunda-feira viajaria de volta a Lourenço Marques, perdão – a Maputo, o pai já tinha tratado de tudo e Moçambique era o país deles, queriam voltar e lá continuar a viver. Luís não conseguiu escolher uma palavra das tantas que queria dizer. Não queria o seu mundo sem Ângela. Queria dizer-lhe o quanto ela era bela, o quanto estava apaixonado, o quanto a desejava, o quanto precisava dela. Mas nada conseguiu dizer.
Não voltou a vê-la, nada soube dela. Regressaram a timidez e as dificuldades com as raparigas. O mundo perdeu luz, cor e harmonia.
Alguns anos depois tornou-se adulto e foi mitigando a timidez. Encontrou outras mulheres, encontrou o seu amor. Mas a imagem adolescente da Ângela, a serenidade, a beleza, o amor, ficou para sempre dentro dele, despertando de quando em vez apenas para dizer que está lá, para não ser esquecida, para o encher de ternura.
No momento em que os seus olhos, escondidos nos óculos “fundo de garrafa”, se cruzaram com o verde dos olhos dele, ela sorriu e corou.
Quando, dias depois, entraram no mesmo elevador, cada um soube onde poderia encontrar o outro. Mas não se procuraram. A vida, sozinha, faria com que os seus caminhos coincidissem de novo.
Os olhos dele procuraram mais vezes o sorriso dela, naquela multidão que se atropelava, a cada manhã, no percurso até ao trabalho. O primeiro “Olá!” mostrou que os olhos verde-água tinham voz de Tritão. E o convite para um café fê-la tremer – primeiro por dentro, e depois nas mãos.
No seu coração de menina, sempre sonhou com um homem assim: loiro e de olhos claros, como nos filmes e nas histórias de encantar. Sempre idealizou um príncipe a entrar no seu castelo. E estava a chegar o momento em que ele se tornava real.
No dia e hora combinados, ali estavam, cada um com as suas motivações e expectativas. Ela, de coração num trampolim e bochechas que só podiam sorrir. Ele nos seus olhos verdes, de conquistar qualquer mulher.
Ela que (aos olhos dele) de bonito tinha apenas o nome – Maria – fez cair por terra, num piscar de olhos, a aposta que o levara àquele café.
Ele estava agora rendido à voz doce de Maria. Hipnotizado pelo canto de sereia do relato das suas aventuras, em viagens pelo mundo fora.
Só que ela, mais do que viajar por países, tinha feito muitos percursos interiores, conhecia bem o seu coração… e percebeu, no primeiro momento, que o trampolim se deteve, ao suspeitar a aproximação de um homem vazio.
Foi a primeira vez que uns olhos bonitos levaram os dela a tomar café. Foi a primeira vez que os olhos dele se deixaram cativar por um brilho que não estava visível a olho nu.
Maria abriu um precedente na vida destes olhos, que viram que há muito mais beleza do que aquela que eles podiam alcançar.
O seu sonho de menina morreu naquele dia. Mas fez nascer a certeza de que, o azul celeste do seu coração, não seria nublado por uma qualquer cor de olhos bonitos.
Beleza. Chega-nos pelo ar. Um som, uma imagem, um pormenor. A covinha do teu sorriso quando me vês chegar. E assim te chegas a mim. Passas a ser parte minha porque, de algum modo, te toquei, mesmo que nem um dedo tenha mexido. Os meus olhos iluminam-se quando te vejo. Incendeias a minha alma. Amor lindo. A melhor escolha da minha vida. Para sempre.
Há pessoas que nascem para isso: ajudarem-nos, apoiarem-nos, crescerem connosco e amarem-nos incondicionalmente. Beleza rara. Serem humanos e tocarem-nos a alma. Até mesmo aquilo que nunca ousamos, ou sabíamos mudar. O nosso céu particular.
Quando penso em ti e fecho os olhos, vejo sempre um sol brilhante num céu imensamente azul e branco, e muitas flores de todas as cores. Sorrio. A vida dá tantas voltas.
Eu agradeço-lhe por isso. Às vezes o céu é bem cinzento e escuro, mas quando olhamos em volta e vemos a normalidade da vida, a rotina do dia-a-dia, as árvores sempre prontas a serem admiradas, o mar sempre recetivo a um mergulho, a música à espera de ser ouvida, o corpo pronto a ser sentido e vivido. E a gente esquece o que passou.
Andei dias a fio a pensar como iria abordar o tema proposto. Nunca gostei de pensar e falar em beleza, ou no belo, apesar de conseguir, evidentemente, reconhecer e categorizar o que, para mim, é belo. Em certa medida, acho o tema tão ambíguo, que cai por terra qualquer validade pretensamente conclusiva. E eu tenho tendência para chegar a conclusões.
Pensei na fotografia, que capta o belo. Na arte, que cria o belo. Na música, que eleva o belo. No amor, que se quer belo. E repudiei a ideia de pensar sobre o tema quando me lembrei das pessoas. Quão falsa relação pode ser a junção dessas duas palavras: beleza e pessoas.
A beleza está repleta de lugares comuns, tendências e manipulações. Invade de forma direta ou insidiosa o nosso pensar, o nosso escolher e o nosso comportamento. É politicamente correta, tornando-se assim, em confidências, rotundamente falsa. Os seus padrões (atuais) incomodam-me, mas, no entanto, vaidosamente arranjo-me de manhã e frequento o ginásio de tarde. Sim, somos maioritariamente hipócritas no que toca ao tema. A verdadeira beleza vem de dentro, dizem-nos. Mas o que sentiríamos nós se tivéssemos filhos indiscutivelmente feios?
Será que a beleza está nos olhos de quem a vê? Talvez. Acredito, contudo, que na forma como a sociedade evoluiu, cada vez mais vemos todos a mesma coisa. Estamos a ficar cegos para a beleza da fealdade...
Rui Duarte
Publicado às 07:30
Porto | Portugal
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