O belo na tela de fundo negro (Beleza – 6)
Foto: Joy - Erge
Mariam Vattalil era feliz a trabalhar com os pobres e oprimidos de Indore, na Índia. Vertia essa felicidade num sorriso fácil, do tamanho do mundo e à medida de cada um. A irmã Sorriso, assim era conhecida, balsamizava a dor dos sofridos, ajudava os desfavorecidos e integrava os expulsos da sociedade que ninguém queria. Chegavam-lhe desvalidos, vítimas da calhordice de seres abjetos que roubavam a dignidade aos pequenos agricultores, despojando-os das terras e obrigando-os a trabalhar no que já fora deles, a troco de salários vergonhosos.
Às vítimas, instava-as a lutar, aos dominadores, tentava sensibilizar. Ensinava aos pobres métodos agrícolas mais modernos de forma a rentabilizarem o esforço despendido. Mostrava-lhes as vantagens de saber ler e escrever, e sensibilizava-os para que enviassem os filhos à escola. Com as mulheres promovia grupos de autoajuda, transmitia-lhes noções básicas de educação, saúde e higiene. Incentivava-as a constituir pequenas poupanças, criar e gerir micronegócios. Mariam Vattalil era o rosto da esperança que faltava naquele ambiente de miséria.
Aos oprimidos não lhes é reconhecido o direito a ter esperança – se lhes fossem reconhecidos direitos não eram oprimidos – e a esperança deles era um perigo para a ordem instituída e para a paz podre que a sustentava, por isso, a comunidade Hindu e os proprietários locais que enriqueciam com a pobreza dos desfavorecidos, sentiam-se ameaçados. Primeiro tentaram convencer a jovem a deixar o lugar e a deixar de intervir, mas ela, determinada a cumprir a missão para a qual sentia que tinha sido escolhida, não obedeceu e continuou a fazer o seu trabalho junto dos mais necessitados. Convencidos de que não conseguiriam demovê-la, resolveram encomendar a morte de Vattalil. Samunder Singh aceitou fazer o serviço. Muniu-se de uma faca e, no autocarro em que Vattalil viajava para Indore, desferiu-lhe 54 facadas roubando-lhe a vida. Samunder foi julgado e a sentença ditou prisão perpétua.
Um horror difícil de descrever, muito pouco consentâneo com o tema proposto – beleza. Mas se o horror está presente nesta história, também é nele que a bondade do ser humano foi mestra e pincelou um quadro de rara beleza.
Samunder, depois de preso, foi abandonado por todos. A família, envergonhada, não quis saber dele e os que lhe encomendaram a morte de Vattalil, esqueceram-no. A privação de liberdade não o reeducou, transformou-se num ser vingativo, vivia atormentado com um único pensamento: fazer justiça pelas próprias mãos sobre aqueles que o enganaram e abandonaram.
Um dia, inesperadamente uma irmã da vítima Vattalil, visitou-o na prisão. Estava dada a primeira pincelada de bondade na negritude de uma tela que haveria de concluir-se colorida e de uma beleza impressionante. Com uma simples mas imensurável frase, o horror foi-se esbatendo. Frente a frente com o carrasco da irmã, ela abraçou-o e chamou-lhe irmão. A ação da família que tinha perdido um dos seus, de forma tão bárbara e violenta, não se ficou por esse gesto e continuou a surpreender-nos. Moveram influências, fizeram pedidos e conseguiram que a sentença fosse reduzida para onze anos.
Quando cumpriu a pena e foi libertado, Samunder procurou-os para agradecer tudo o que fizeram por ele. E com este gesto a tela ganhou novos tons, sobre ela caiu o vermelho sangue, diluído em lágrimas de uma mãe em sofrimento, mas ainda assim, com a grandeza que a individualizou, beijou as mãos do assassino porque sobre elas estava o sangue da sua filha.
Numa cerimónia recente dedicada a Vattalil, ele lá estava, na primeira fila, para a homenagear; mas a mais bela e reconhecida homenagem que ele lhe presta, ainda hoje, é a continuidade do trabalho que ela começou junto dos desfavorecidos de Indore.
Vidas que me inspiram e me aproximam desta tela colorida onde, em traço muito incerto, é certo, lanço o verde da esperança na humanidade.
Cidália Carvalho