Caminho novo (Jogo – 17)
Foto: Bridge - James De Mers
A noite inteira na cama, enrolando-se e desenrolando-se no lençol, sem a menor hipótese de sono. De repente, “Good day sunshine”, dos Beatles, encheu o quarto. Deu um salto e olhou o rádio-despertador; eram sete e trinta. Interrompeu o locutor quando este dizia qualquer coisa sobre os cinquenta anos do “Revolver”. Estava hoje tão decidido como ontem em procurar ajuda para mudar a sua vida, talvez ainda fosse a tempo de mudar também o rumo da sua família; continuar a sentir esta vontade era um bom sinal.
Fez uma pausa fixando o olhar no teto escuro e levantou-se. Apressou-se para o banho; não conseguia recordar há quanto tempo não se levantava tão cedo, nem há quanto tempo não tinha pressa de começar o dia. Foi uma sorte ter conseguido aquela consulta tão em cima da hora e não queria mesmo perder a oportunidade, não queria mesmo voltar a perder-se. Olhou-se no espelho e fixou-se na imagem dos seus cabelos em turbilhão, na barba espigada, nos olhos inchados. Apesar de insone, sentia-se cheio de energia, talvez por força da adrenalina provocada por esta sua aposta.
- Então, Ricardo, o que dirás à terapeuta? Por onde irás começar? O princípio é sempre um bom começo!
As mãos iniciaram os preparativos do banho e a cabeça começou a lista dos pontos que queria abordar, do que era necessário que falasse mesmo que não fosse relevante para a terapia, mas era importante para ele, para acertar contas consigo mesmo, agora que aceitou o problema e que percebeu que não conseguiria resolvê-lo sozinho. Desde logo a ideia fixa no jogo, a memória das suas experiências, a permanente especulação de resultados, a constante elaboração de apostas, a necessidade de conseguir dinheiro para jogar. Depois a necessidade de aumentar a dimensão das apostas para conseguir uma maior excitação, a inquietação e a irritação que sente quando não joga, ou quando não joga o suficiente. A total incapacidade de parar de jogar, ou mesmo de jogar menos. Percebeu que também é necessário dizer que joga para fugir aos problemas da sua vida, para aliviar o desconforto, o desamparo, a ansiedade e a culpa que sente, tantas vezes provocados pelo facto de não conseguir parar de jogar. Já perdeu tanto, tanto dinheiro, mas acreditando sempre que, se voltar no dia seguinte, recuperará tudo e com prémio; completo engano. Mentiu tanto, a tantas pessoas, escondendo o seu vício, a sua dependência, mentindo a si mesmo. Aceita tudo isso como verdade, pela primeira vez. Na noite de ontem percebeu para onde caminha, sozinho, mas que o caminho poderá ser outro, mas não sozinho. Fez muitas coisas que não deveria, cometeu ilegalidades e crimes para conseguir dinheiro. Felizmente as pessoas foram compreensivas e tolerantes, mas perdeu um excelente emprego e uma carreira na qual tanto investiu. E com o emprego perdeu a família - a maior perda de todas, bem maior do que a perda do seu amor-próprio. Pediu tanto dinheiro emprestado, fez tantas promessas que nunca teve intenção de cumprir, para poder jogar. Sente-se execrável, mas também e pela primeira vez, com alguma esperança que as coisas possam vi a ser diferentes.
- Sr. Ricardo Fontes!
Levantou-se; eram nove horas precisas. Começou a caminhar junto com a empregada da clínica, em direção ao gabinete. No estômago, aquela sensação de quando decide fazer uma aposta; esta era bem alta e o estômago já sabia disso. Sentiu que este era o início da nova caminhada e que já não caminhava sozinho.
Fernando Couto