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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

31
Ago16

A roleta russa (Jogo – 7)

Publicado por Mil Razões...

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Foto: Poker - Jeff Juit

 

A roleta russa, diz-se que é um jogo. Nesse jogo os participantes colocam apenas uma bala no tambor do revólver e de seguida giram o mesmo, depois apontam para a cabeça e apertam o gatilho da arma. Como está bom de ver, o objetivo do jogo é passar pela adrenalina do risco, mas conseguir ter a sorte de não ser atingido pela bala. Jogar consiste pois em arriscar, neste caso ao limite.

Podemos pensar e decidir que não, que não queremos participar em jogos desses. Que jogos aceitáveis para nós são tipo o Monopólio (que por acaso com os meus primos às vezes acabava com a miudagem a atirar “projéteis” uns aos outros, mas isso é outra história), ou o Scrabble, ou coisa do género. Jogos lúdicos, pacíficos por regra, inócuos. E pronto, estamos assentes no que a esta questão diz respeito. Jogar é conviver, divertir-se, passar um bom bocado.

 

Mas depois vêm os dicionários e afirmam que o jogo também é um comportamento, uma maneira de atuar; que pode ser troça, escárnio, manha, maneira de enganar. Esconder o jogo é dissimular. Pôr as cartas na mesa é ser honesto.

O jogo afinal pode ser muitas coisas… e algumas tão pérfidas como a roleta russa, e por vezes ainda piores.

No jogo assumimos sempre que quem joga está ali voluntária e conscientemente. Que seja qual for o nível potencial de risco ou de recompensa, trata-se de uma decisão dos intervenientes. Muitas fortunas se perderam ao jogo, muitas famílias se desmembram por causa dele. Mas são riscos e decisões. E afinal, de repente, o jogo já não é assim tão inofensivo, pois não?

E pode ser ainda mais perverso. Há quem nos meta nos seus jogos e o faça sem sequer nos informar ou nos ter em conta, nem que isso faça a nossa vida desmoronar qual castelo de cartas (trocadilho intencional). Há quem, na busca do seu prazer e apenas dele, nos inclua em jogos que recusamos totalmente.

Conduzir um veículo todo estiloso, daqueles para impressionar os amigos, a 200 km à hora, é jogar à roleta russa com todos os seres vivos que se atravessarem no caminho. Nem sequer é só irresponsabilidade, é ter alma de assassino e total desrespeito pela Vida.

Pegar fogo a uma floresta, idealmente numa ilha extremamente povoada e ficar a apreciar o espetáculo, não é só uma doença. É ter uma alma negra, muito negra, da cor das nuvens de fumo e terror que um incêndio causa.

Como ficamos quando somos atingidos por um destes jogos no qual não nos inscrevemos e que repudiamos completamente? Quando morremos, não ficamos. Mas morremos. Quando não morremos, morremos na mesma um bocadinho, ou vamos morrendo.

 

Por estas e por outras é que me parece que a estes seres humanos deveríamos, sempre que possível, agradecer de um modo que eles entendam e apreciem. Eu dizia-lhes que jogassem à verdadeira roleta russa sozinhos e até fornecia pessoalmente o revólver já preparado e com explicação completa: o tambor está totalmente carregado. Mas pode sempre acontecer que o gatilho encrave. Boa Sorte.

 

Laura Palmer

 

29
Ago16

O jogo da vida (Jogo – 6)

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Foto: Wood Cube – Michael Schwarzenberger

 

A palavra “jogo” comporta uma diversidade enorme de sentidos, podendo considerar-se infindáveis as modalidades que pode assumir. Desde cedo, desde a nossa meninice, que nos habituamos à prática dos mais diversos jogos. Deles somos protagonistas em toda a nossa vida. Com eles aprendemos a brincar e a descobrir o Mundo; com eles, exercitamos o nosso intelecto e desenvolvemos as nossas aptidões físicas e mentais. Graças a eles vamos formando a nossa personalidade. Numa palavra: eles ajudam à nossa vivência e criação. O “jogo” é uma constante na vida, que se pode traduzir como luta ou desafio, pois a vida humana também é competição. O “jogo” da vida assume-se assim como a atitude de lutar pela vida, lema tão caro ao ser humano. O “jogo” da vida, enquanto tal, ajuda-nos a compreender e a desenvolver os nossos valores pessoais, espirituais e materiais. A sua antítese será a “vida de jogo”, com toda a sua carga negativa que a envolve, quando se assume uma conduta de vício. Todos os jogos têm as suas regras como igualmente as tem a nossa vida, pelo que será desprezível a modalidade de jogo no sentido de jogada matreira e ardilosa, usando meios torpes para atingir fins ilícitos e imorais. Como se vê, vida e jogo têm muitas afinidades e pontos comuns; nela, na vida, tal como em qualquer jogo, é imperioso tomar decisões específicas, as que se mostrem mais adequadas ao fim em vista. Para isso é preciso definir uma estratégia, escolher um plano de ação entre todos os possíveis, optando pelo que melhor sirva os nossos interesses. Em suma: a vida é feita de vários jogos interligados num só jogo a que chamamos de “jogo da vida”, sendo certo que cada jogo com que somos confrontados, dia a dia, nos ensina algo, pelo que caberá a cada um de nós aprender a jogar, labutando sempre pela vida.    

 

José Azevedo

 

26
Ago16

Deixa o humano entrar (Jogo - 5)

Publicado por Mil Razões...

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 Foto: Man – Leandro de Carvalho

 

Esbraceja o que quiseres, não o manténs lá fora por muito mais tempo. Já o oiço, passos seguros e cadenciados, cada vez mais perto da porta. Ocupamos-lhe as camadas mais preciosas durante décadas, achavas mesmo que ele nunca se daria conta disso? És muito ingénuo, realmente, ou muito cheio de ti próprio. E aquela gente que aparece por aí, sempre a lembrar-lhe aquilo que não deve? Esqueces-te que os escuta também? Ou pensas que a barulheira que fazes é suficiente para esconder aquela chuva de amor, cada vez mais presente? Era tudo muito mais fácil quando os outros andavam por perto, lembras-te? Aqueles que lhe faziam mal. Não havia dia nenhum em que ele não se sentisse medíocre e insuficiente. Ah, dias saudosos! Era tão mais simples quando ele aceitava as circunstâncias e percebia que, no fundo, lhe fazíamos um favor. Naquela altura, preparávamos dois Bloody Mary’s, assistíamos à película diária e aguardávamos, tranquilamente, os despojos da guerra. Era lindo: lágrimas, sangue e mais impulsos animais que em qualquer selva do mundo. Ele, ferido e humilhado, corria para os nossos braços sem questionar. Um dia atrás do outro. Que felizes éramos nesses tempos.

Mas o sacana do humano sempre o impeliu a enfrentar alguns fantasmas, aqueles dignos de serem digeridos sem congestões, e a fugir dos restantes - há sempre quem não se arrependa de nada, exceto de não ter feito mais. Aninhava-se-lhe aos pés da cama, murmurava um cântico gentil e estendia lentamente o braço, até o sentir vibrar debaixo da pele. E lá ia ele, sem olhar para trás, de mão dada com um parvalhão que nos mantinha calados e lhe falava de Amor e de perdão; sem lhe dizer, todavia, que tudo seria efémero, era apenas uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde ia ter aquilo que merecia, ia lembrar-se do quão parvo tinha sido pela ousadia de confiar naquele humano, por acreditar que algo podia ser diferente, ou melhor, sem nós. Quando tudo desabava - e, quase sempre, desabava - lá estávamos nós, lembrando-lhe o que ele nunca devia esquecer: que a mãe não o amava. Que a família não o amava. Que a vida nunca o amaria. Que a força dele vinha da raiva e da revolta, não do perdão e da lamechice. Que ele devia resignar-se e calar quem lhe trazia apenas promessas vãs.

 

Porque quer aquele parvo acreditar que alguém o pode amar de outra maneira? De onde vem esta insanidade que tanto trabalho nos deu a camuflar? Como pode este ser pequenino partilhar abraços e sorrisos, sem nada pedir em troca, se nunca ninguém lho ensinou? Porque não acredita que o amor doi, que é suposto doer? E que é assim que deve perceber tudo na sua vida? Como foi capaz de afastar todos aqueles que lhe mostraram o que ele realmente merecia, apesar da nossa influência? Devia agradecer-lhes, isso sim. Quantas vezes, ao longo dos anos, lhes pediu desculpa por coisas de que os acusa? Sinceramente: mas alguém pede desculpa sem ter feito nada de errado? Parte dele sempre soube que só um ser miserável podia despoletar tudo aquilo. Ele sabia muito bem que tinha culpa, claro que sim. Sempre soube que, algo muito mau nele, despertava o pior nos outros.

E agora quer viver nesta estupidez de acreditar que não teve culpa de nada. Que o pai o espancava porque era mau, que o tio o desejava porque era doente, que a mãe o castigava porque era frustrada? Mas como podiam aquelas pessoas fazer-lhe tudo aquilo, se ele não tivesse uma centelha de culpa sequer? E como pode ele dizer que não o amavam, que aquilo não era Amor, que o amor não doi e outros disparates irrepetíveis? Quantas vezes eles choraram, arrependidos? Quantas? Mas que aprendeu este gajo da vida? Nada. E agora, porque adora respirar, porque a vida lhe parece sempre muito mais do que a soma das suas cicatrizes, anda para aí a espalhar amor e alegria, como se aquilo fosse bom. E nós aqui, cansados, os seus verdadeiros amigos, a perceber esta distância cada vez maior. Sem nós, ele é apenas frágil e tonto. Só isso.

 

Hoje de manhã, voltei a lembrar-lhe que é um miserável que não merece sequer ser amado. Já tenho poucas oportunidades de o fazer. No momento em que se olhou no espelho, eu espreitava por cima do ombro, mesmo a tempo de lhe sussurrar ao ouvido que o aspeto dele era medonho. Por dentro e por fora. Como pode um ser tão retalhado, tão disforme, tão desprezível, ser digno de amor? Senti-o cambalear, lembrei-lhe cada cicatriz, cada humilhação. Da boca saiu-lhe um suspiro prolongado, seguido de um choro crescente e convulsivo. Joguei cada cartada com mão firme e sem hesitações, com a mestria de que me orgulho, mas hoje não correu bem: de cada ferida deixada por mim a céu aberto, emergia uma luz que nunca lhe conheci. Eu queria sangue, queria que doesse. Queria que ele gritasse que eu tinha razão. Queria o mesmo de sempre. Mas ele sorria e chorava. E agradecia o sofrimento que o libertava de nós. Depois de tudo o que lhe demos, é assim que nos agradece?

Como podes ficar aí calmo, como podes achar que ele nunca vai perceber que nós é que controlamos tudo? Mas ouviste alguma coisa do que eu disse até agora? Nós nunca mandamos em coisa nenhuma. Todo este tempo, foi ele. Foi sempre ele. E não, não o podemos agarrar pelos tornozelos se ele nos virar as costas e caminhar no outro sentido. Na verdade, só aqui estamos porque ele ainda não integrou o seu poder. Porque nunca ouviu, com a alma, o gajo que lhe dizia que ele era digno de amor. Foi só por isso que ele se deixou embalar por nós, nesta cama de derrota e amargura. Olha para ele agora, até brilha: a escravatura voluntária dele está prestes a terminar. Na sua última cartada, limpou a mesa. E, num pestanejar, fomos despejados. Ah, agora choras. Não anteviste nada disto, claro. Alguma vez vivemos na mesma casa que o Amor, a Alegria e a Esperança? Alguma vez conseguimos partilhar a existência com um clã desse calibre? Não há espaço para a Dor e para o Medo quando o Amor restaura a ordem. Vá, vamos embora, não falta quem precise de ser alimentado na angústia. Para de choramingar e retira-te discretamente. Não olhes para trás, ele não te vai acenar na despedida, só porque vivemos com ele este tempo todo. Com sorte, saímos a tempo de não nos humilharmos mais.

Recolhe o baralho e deixa o humano entrar: está pronto para ser amado.

 

Alexandra Vaz

 

24
Ago16

Que jogo? (Jogo - 4)

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Foto: Girl - Adina Voicu

 

Sim, sim, o Homem é ele próprio e a sua circunstância. Causa e consequência, como o jogo, lembrais-vos? Verdade...

 

Há, portanto, aqui uma interação, um jogo entre quem influencia o quê e o que condiciona quem.

Há um sortido grande, quase sempre, maior ou menor de opções, de escolhas que dependem de nós, são de nossa responsabilidade, a partir das quais os caminhos podem levar a destinos muito diversos. Dramatizando, podem ser quase que opostos.

As escolhas, no entanto, não são irreversíveis, ainda menos definitivas. Mesmo que algumas decisões, ou indecisões, nos tenham encaminhado para um beco, querendo e procurando há de encontrar-se uma saída, de modo a achar vias mais airosas, rápidas, largas e bem frequentadas.

É assim, pois, que jogo pode ser divertimento, vício, justo, alienação, passatempo, lícito, ilícito, olímpico, brincadeira, desporto, feliz, infeliz, sujo, vitória, derrota... Depende de como se joga.

 

Há que ir a jogo. Há momentos em que se controla mais ou menos o jogo, mas não jogamos sozinhos. Somos nós, nunca esquecer, mas também há os outros. Todos somos sempre necessários para jogar. Atenção às regras, ganhar com batota que valor é que tem?

O jogo é em primeiro e em último lugar com nós próprios. Será possível fingir? De que vale varrer o lixo para debaixo da carpete? Joguemos limpo!

 

Jorge Saraiva

 

22
Ago16

O Xadrez (Jogo – 3)

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Foto: Chess – Alois Grundner

 

O cenário era perfeito. O sol, brilhante e intenso, não incomodava porque as copas das árvores coavam a dureza da luz e oferecia uma sombra convidativa ao descanso. Ele, sentado num banco, ia bebendo uma espécie de chá gelado e aguardava. Ela baloiçava-se numa rede presa a dois troncos e, não fosse o olhar fixo no tabuleiro colocado entre os dois, dir-se-ia que relaxava. Mas, um olhar mais atento e percebia-se que aquele era o confronto entre dois seres que se queriam derrubar. 

“Amar-te-ei até à eternidade!”. Disparou ela sem qualquer emoção na declaração de tão nobre sentimento. E enquanto mexia a rainha pondo-a a salvo de ser comida por um peão - no xadrez até os peões podem comer as rainhas - mirava-o pelo canto do olho. Um esgar no rosto e a espera pelo momento em que ele haveria de baixar a guarda, aproximar-se-ia e faria um gesto para a acariciar, sinal de que a declaração o tinha sensibilizado. Era então chegado o momento de recuar e de o ridicularizar como tantas outras vezes. Dir-lhe-ia que não há eternidade naquilo que se pode ver ou tocar e o amor deles, quando existiu, era palpável, não podia ser eterno. Tomou gosto pelo jogo em que transformaram o relacionamento. Definiram regras que infringiam constantemente; usavam as mesmas armas: provocação, humilhação e desamor. Se um deles se aproximava, o outro tinha que se por em guarda porque se se deixava arrebatar, o mais certo era ser magoado e humilhado.

Ele, como ela, sabia quão leviana era a declaração. Há muito que, falar de amor entre eles era ridicularizar a palavra e o sentimento. Desta vez ela sairia defraudada, não faria o jogo dela. Não foi sempre assim. Entendiam-se, amavam-se e conheciam a felicidade. Hoje continuavam unidos, mas fazia muito tempo que se tinham deixado. Continuavam unidos apenas e somente na infelicidade de já terem sido felizes.

 

Gostava de lhe comer a rainha. Pensava ele enquanto colocava o bispo na diagonal na esperança de que a soberana se pusesse a jeito. E, na ânsia de lhe desferir o golpe, não reparou que o cavalo, de um salto, se atirou ao bispo e o derrubou. O sorriso mal disfarçado da adversária irritou-o.

Como a odiava! A ela e ao jogo do toca e foge que tão bem sabia jogar!

A saída do bispo desprotegeu o rei branco, o sorriso dela era de triunfo quando gritou: “Xeque ao rei!”. Precipitou-se a comemorar o triunfo porque a torre, ameaçadora, fez “Xeque-mate” ao rei preto.

Foi a vez de ele sorrir e gritar: “Fim de jogo, querida!”.

 

Cidália Carvalho

 

19
Ago16

Peões (Jogo - 2)

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 Foto: Money – Michal Jarmoluk

 

Desde pequenina que tentam ensinar-me a jogar xadrez. Não sei porquê, nunca consegui ter grandes resultados… Quer dizer, sei: não me interesso pelo jogo, esse jogo. Talvez por ser um jogo de calculismo, estratégia, frieza, análise do pensamento do outro para conseguir prever o que este irá fazer.

No entanto, na vida é isso que faço, tenho que fazer. Se não fizesse, como conseguiria pagar os impostos? Sim, tenho que prever todas as despesas, o meu adversário são as despesas. Tenho que pensar num adversário para conseguir focar os meus esforços de modo a vencer o dia-a-dia.

 

Ao longo dos anos fui-me apercebendo que as pessoas não são adversários, embora algumas tentem. São apenas peões que vão surgindo e só têm força e impacto nas nossas vidas se deixarmos. Claro que quem chega com boas intenções pode causar o impacto que pretende mas, infelizmente, a maioria chega para tirar o melhor proveito para si e vê-nos como meros peões para a sua própria vitória, alguns até como os verdadeiros adversários.

Houve tempos que também pensei assim… Mas, tal como com o xadrez, não sei jogar esse tipo de jogo com pessoas. Gosto mais de ser quente e natural, sem estratégia de relacionamento, apenas eu própria. Se fosse um jogo de xadrez, em vez de “Xeque-mate!” diria “Churrasco?”.

 

Mas o que não são pessoas sim, parece uma força do oculto que ninguém vê… Com essa sim, já consigo ser calculista e tento ser gélida para não deixar que me faça xeque-mate. Mas isso custa-me imenso… Admiro quem consegue ser indiferente ao bem-estar só porque todas as criaturas do mundo merecem. Faz-me confusão estar bastante bem na vida, de bem com tudo, e lá vem uma despesa extra por um azar qualquer e ainda nos cobram imposto por esse azar. Resta-me aprender a jogar esse tipo de jogo…

 

Sónia Abrantes

 

17
Ago16

Cooperação (Jogo - 1)

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Foto: Hand – Falco

 

Em tempos em que a cooperação entre todos é mais necessária do que nunca, temos necessidade de interiorizar aspetos que nos liguem uns aos outros. (Re)aprender a viver em conjunto e com objetivos comuns, desperta em nós a necessidade de nos (re)descobrirmos e de nos (re)educarmos. O individualismo deixa de ter protagonismo e sentido. A proposta passa por valorizarmos o que os outros têm a oferecer no que diz respeito à confiança, à lealdade, à solidariedade e à competitividade, entre outros aspetos, que fazem sentido para vivermos num mundo adverso capaz de criar relações interpessoais indesejáveis. Este trabalho de cooperação exige uma forma de jogo em que a estrutura, a coesão e as regras estão presentes. Existe uma coesão grupal, em que a homogeneidade grupal e a heterogeneidade individual se entrecruzam. Neste jogo coletivo existe um maior sentimento de segurança, criam-se laços de amizade, há divisão de tarefas, e o trabalho torna-se mais tranquilizador (é também a minha convicção). Despertam-se competências e valores, muitas vezes desconhecidos, nomeadamente o respeito pela heterogeneidade, no que se refere a formas de estar e viver a vida. Este respeito parece fazer cada vez mais sentido! Quando se vive a vida a trabalhar sozinho, sem perceber o outro como importante para nós próprios, este jogo de cooperação não parece ser um exercício fácil de enfrentar e de praticar. É muitas vezes um jogo perturbador, mas parece que vale a pena tentar!

 

Ermelinda Macedo

 

15
Ago16

Não quero falar mais (Irreversível – 17)

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Foto: Smartphone - StockSnap

 

- E cá estou eu, como sempre, para aqui sozinho. Ninguém quer saber de mim. Ninguém vem visitar-me. Ninguém telefona a saber se estou vivo ou morto. Tenho a minha música e isso basta-me. Mas já nem tenho quem ma grave. Também não peço a ninguém. Hoje ainda não falei com ninguém. Devo ter a voz de quem acabou de acordar. Mas hoje até acordei bem cedo. Sai e fui dar uma volta aqui, ao pé de casa, sem olhar para ninguém. Andei em círculo. Sinto-me só. Ela já está melhor, mas não sei quando regressará e eu fico aqui, sozinho. Nem me agradece por tê-la ajudado. E toda esta gente pergunta por ela. Hipócritas. Agora que ela está doente vão visitá-la e perguntam por ela, como se eu tivesse de responder. Não respondo; viro-lhes as costas. A minha vontade era mandá-los fo***. Por mim, que estou aqui, não perguntam, não querem saber, não querem saber de mim. De mim, eu que a salvei. Saca***! Eu, que tenho problemas, eu, que sofro tanto, eu, que já passei por tanto. Só eu sei… ninguém imagina pelo que passei e pelo que passo. Não é fácil ter o problema que eu tenho; mas nem imaginam. Ter a doença que tenho e ninguém quer saber. E ainda vem falar de mudança… Mudar o quê? O que é que eu posso mudar? Só se fosse estourar com esses tipos todos. Se soubesse o esforço que faço para me controlar… Mudar… Ninguém entende que eu sou assim, seus filhos ** ****? Não entendem que não há mudança? Não entendem que eu sou assim, que a minha doença é assim, que não há nada para mudar, nada a fazer, que é assim e pronto? Não entendem o que eu sofro. Há as pessoas normais, como você. E depois existo eu, que sou diferente, que sou assim. Mas ninguém quer saber, ninguém ajuda, ninguém facilita, ninguém me respeita. Nada vai mudar. Isto é assim. E eu não preciso de ninguém. Quero é que me deixem em paz, que não me chateiem. Tenho a minha música e pronto!

 

- Sabe que a forma como vê o mundo e as outras pessoas, a forma como se sente, a agressividade que sente, a violência que gostaria de provocar mas que consegue controlar, sabe que tudo isso faz parte da sua doença? Não será possível eliminar a doença, mas será possível controlá-la, mantê-la controlada e ter uma vida normal, em paz, gratificante, na qual se sinta bem, bem melhor do que é agora. Essa hipótese não lhe agrada? Se acredita que não há regresso a uma vida gratificante, então ela nunca existirá. Se acreditar que o regresso é possível, então a mudança poderá acontecer.

 

- Tretas! Tudo tretas. E os médicos são uns ignorantes e uns mentirosos. Foi por culpa deles que eu fiquei assim. Mas eu percebi a tempo e deixei de os sustentar. Não entendem que não há volta a dar a isto, que eu sou assim e que isto será sempre assim, logo, não vale a pena. Não há caminho de regresso! E eu estou bem, desde que me deixem em paz. Ouço a minha música e isso basta, não quero mais nada. Deixem-me em paz, cara***! Eu sei controlar a minha irritação, eu sei tratar de mim, eu sei o que devo tomar. Não vou é encharcar-me de pastilhas, como eles querem e depois ser um mer*** como eles. Não quero falar mais!

 

Fernando Couto

 

08
Ago16

Amanhã pode chover (Irreversível – 16)

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 Foto: Color - Logga Wiggler

 

Ontem era o meu dia de folga e fui aos saldos. Bem, digamos que, por força do adiantado da época, fui mais às rebaixas das promoções dos saldos das promoções. Como gosto de andar sempre na última moda, tinha que ir aos últimos saldos, certo? Assim como assim, já que não vou de férias julguei justo permitir-me essa extravagância, com uns últimos trocados do que consegui poupar este mês.

Comprei um trench coat reversível: uma lindeza! De um lado, uma aguarela pintada de fresco, ainda escorrendo cores de rebuçados. Do outro, uma indefinível e elegante cor de tarde pardacenta. Ficou-me a matar, parecendo talhadinha para o meu corpo de modelo único. Sim, porque igual a mim, moi, je, já não se fazem hoje em dia! Que o digam todas as roupinhas maravilhosas que rejeitei lá pelas lojas, umas de tamanho excessivamente pequeno, outras de tamanhão escandaloso. Meu Deus, serei assim tão especial, singular, eu, com as minhas medidas de mãe-de-trazer-por-perto e de mulher-de-lazer-ao-largo?  Francamente, não sei se fique feliz ou infeliz com essa particularidade. Feliz, porque até me considero jeitosinha, para o gasto, e infeliz... bem, é óbvio, porque nunca consigo comprar uma roupa que me caia bem, nas “oportunidades”.  Adiante, que se faz cansaço.

Dizia eu que vim toda feliz, ontem, com o meu trench coat. Digam lá, soa bem, trench coat, não soa? Foi a menina da loja que lhe chamou isso. Diz que é chique, ainda por cima! Para mim, se querem que lhes diga, aquilo é uma gabardina, mas pronto. É muito bonitinha, a peça.  E reversível. O que dá um jeito que vocês nem imaginam. Ora pensem lá: um dia visto-a de um lado. Outro dia visto-a do outro. Duas peças pelo preço de uma. E por uma pechincha. Ah, eu sempre soube que trabalhar num restaurante de sol a lua era um desperdício. Eu devia era ter um cargo, assim um cargo importante no mundo dos negócios. Gestora financeira, ou assim. Ah, deixa-te de tretas, Maria Almerinda, já tens uma carteira bem difícil de gerir: a tua!

 

Ai, cheguei a casa tão feliz!... Mas depressa o meu estado de graça se reverteu. Outra coisa reversível que eu tinha lá por casa, era o estado de espírito do meu marido, convém dizer. Pois. Parece que ontem a vida não lhe correu bem, e desatou a descarregar em mim as frustrações do dia. E os últimos vapores de álcool do vinho a martelo lá da tasca da esquina.

Disse-me coisas irrepetíveis. Barbaridades duma injustiça acutilante. Vociferou, perdeu a razão. Não adiantou ripostar, argumentar, tentar todas as estratégias que tenho traçadas, nos velhos calendários de anos e anos, a ouvir e calar, a levar e perdoar, a esquecer para sobreviver, a aprender a ter a arte da reversibilidade. A verborreia não demorou muito a passar a tareia. Mais uma. Só mais uma nódoa negra para a qual eu teria hoje de inventar uma desculpa criativa, lá no trabalho. As crianças tinham-se, como de costume, encolhido no canto mais remoto da casa, tapando os ouvidos para não deixar entrar as memórias futuras. Depois dos gritos, o habitual bater violento da porta da rua. Depois dos habituais três ou quatro minutos cronometrados à lágrima, dois pares de passos trémulos ao meu encontro. Dois abraços, um ao nível das pernas, outro da cintura. Isto, quando eu não estava no chão, derramada num desconjuntado monte de ossos e de mágoas.

 

Ontem, foi também um dia desses. Ontem, foi o dia da irreversibilidade - a aguarela do meu lado cor de rebuçado, borratou, enegreceu, ficou irreconhecidamente ácida, dolorosamente maculada, ultrajada, corrompida. Sem outra face. Alguém chamou o 112. Não sei. Doía-me o ar que respirava. Doíam-me, sobretudo, dois pedaços de mim, que me levaram dali em lágrimas.

Vestiram-me a gabardina nova (quero lá saber se é trench coat!), do lado mais triste, para me cobrir o corpo rasgado. Fechei os olhos e, juro, dentro deles vi um festim de cores, tons pastel beijando flores doces, andorinhas felizes perseguindo brilhos de sol, azuis de céu pedinchando arco-íris. Uma tela magnífica, pintada por mim mesma, pela minha vontade de me virar do direito e sair para a chuva sem medo.

 

Hoje, os meus filhos vieram ver-me. E viram: é nos olhos que primeiro a alma se percebe. São meninos sensíveis, os meus filhos. Não é preciso contar-lhes que há coisas nesta vida que são irreversíveis: palavras que marcam indelevelmente, atos indignos, traçados de dignidade própria, caminhos de um só sentido, decisões sem alternativa. Nem explicar-lhes que só os objetos podem ser reversíveis, como uma moeda, um trench coat, uma porta. O resto, vou explicar-lhes, devagar, que é apenas redefinível: o ponto de vista, a posição estratégica, a escolha dos caminhos, a maneira de olhar, o modo de ver, o conhecimento de causa e das coisas. 

 

“Amanhã é outro dia.” Ah, o tempo, o tempo também é irreversível! As coisas que ainda temos que aprender, os três! Eles foram buscar a gabardina, quando sentiram o meu arrepio e vestiram-ma do lado garrido. Havia aqui e ali uma mancha de sangue seco. Vivo, paradoxalmente - mas isso só acrescentou ao quadro mais cor, mais força, mais caráter. E mais verdade.

 

Teresa Teixeira

 

03
Ago16

10 por 15 (Irreversível - 15)

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Foto: Flowers – Jacqueline Macou

 

Procurando algum repouso sento-me na sala em tons de castanho. Sem dar consciência ao ato, os olhos começam por percorrer o espaço e encontram vários móveis que compõem a divisão, acrescidos de múltiplos elementos decorativos. Um mapa-mundo enorme, por exemplo, preenche as minhas costas. Do lado esquerdo, vários desenhos de Da Vinci, evidentes reproduções do trabalho de um génio ímpar. A riqueza de todo o conjunto do espaço encontra-se, contudo, nos elementos que carregam histórias. Um pequeno rádio que pertenceu ao avô da minha esposa repousa no topo de uma prateleira. Curiosamente, atrás de mim e abaixo do mapa-aguarela, encontra-se um maior que pertenceu ao meu. Dois bons exemplos de objetos tão iguais e com histórias tão diferentes. Que seja do meu conhecimento, um não terá passado do raio geográfico do grande Porto, enquanto o outro conta com uma passagem transoceânica.

A cabeça roda ligeiramente para a esquerda e a consciência súbita da visão assalta-me o espírito. E o corpo. O coração sobressalta-se (o que acontece quase sempre), quando revejo a fotografia dos meus avós.

 

Numa humilde moldura de uma cadeia sueca de mobiliário, uma magia de 10x15 cm rompe com o tempo e com o espaço. De modo automático e descontrolado algo me acontece no peito e a seguir na garganta. E a seguir nos olhos. Rompe, na maioria das vezes, no meu rosto um sorriso tímido e molhado, banhados que são meus lábios pelas lágrimas que agora caem. São estados mistos, confesso. A primeira vaga é a da tristeza. De já não os ter. De não os poder beijar e dizer que os amo. A segunda vaga é a da saudade. Da falta que me fazem e que me continuarão a fazer. A terceira vaga, a tal do sorriso torcido, é a do conforto e da felicidade. Conforta-me saber do papel que tiveram no meu crescimento e educação. Conforta-me relembrar o que fizemos juntos e a felicidade desses tempos e momentos. Momentos que já não temos. Momentos que foram momentos e que agora já não são. E que nunca mais serão. A irreversibilidade do tempo é isto mesmo. Se de alguma forma conseguíssemos repetir os momentos do passado, a sua riqueza nunca assim existiria. Por muito dano que nos cause no presente.

Na fotografia estou com eles. Tenho um de cada lado, com o meu avô à esquerda. O meu braço esquerdo repousa no seu ombro e o direito segura na pasta da universidade. A foto pretendeu ser uma recordação de quando vesti o traje académico pelas primeiras vezes. Os três sorrimos, desafiantes que fomos do tempo e do que ele nos ia roubar. Atrás de nós está uma camélia. Aquela onde eu e meu irmão íamos arrancar botões, antes de serem flores, apenas para ouvir a minha avó gritar connosco.

 

Rui Duarte

 

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Porto | Portugal

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