Publicado por Mil Razões...
Foto: Old People – Claudia Peters
Passou tudo tão rápido: as folhas no calendário, a vida, as sensações, as decisões que, hoje, nem sei se foram realmente minhas. Vivi no escrutínio divino sem sentir a humanidade em mim. Zanguei-me tantas vezes com o mundo, exigi a perfeição de quem sempre me rodeou – e eu nunca fui perfeito. Fui amado enquanto vociferava coisas sem sentido, fui amparado, mesmo quando caía sozinho. Tudo o que tive foi fácil demais, foi como soprar uma vela de aniversário num bocejo descuidado. Fiz planos, sim, muitos planos, para mim e para os outros, e vivi sempre na antecipação do momento seguinte - alguém tinha de se preocupar com isso, num mundo insano em que tudo andava à deriva. Havia de chegar o dia do descanso, o dia do lazer absoluto, o dia em que os filhos estariam arrumados, empregados e, se possível, felizes; o dia em que a Antonieta estaria também reformada e poderíamos fazer todas as viagens com que me atormentou, durante anos, até ao mais ínfimo detalhe. Mas agora, agora não era tempo para lamechices ou diversão, agora não. Agora era preciso ser racional, ter a cabeça no lugar, fazer dinheiro, garantir o sustento da família. Mais do que isso: era preciso assegurar o sucesso da família, o bom nome, o respeito de todos.
Os filhos queixaram-se sempre: nunca fui presente o suficiente, amoroso o suficiente, interessado o suficiente. Assim que perceberam que o “agora” seria sempre um “depois”, que o amor do pai podia significar um novo gagdet ou aquele par de calças super fashion, deixaram de se queixar. Passaram a viver felizes com o que tinham mas, aos poucos, fui deixando de saber quem eles eram. A Antonieta também vivia insatisfeita, queixou-se anos a fio. Chorou e fez cenas dignas de qualquer tragédia grega, felizmente, dentro da privacidade do nosso lar; só não a deixei porque me poupou dessas vergonhas em público. Sempre a amei, mesmo quando não o percebia, mas irritava-me ela não ser capaz de entender que só um homem que realmente a amava, podia trabalhar como um louco para garantir que nada lhe faltava. Como era possível ouvi-la dizer que lhe faltava o mais importante, sem me sentir irado? Como explicar o amor e a dedicação a quem vive de eufemismos românticos? Felizmente, três décadas depois de termos casado, deixou de me atormentar. Nunca mais chorou - nem baixinho, não voltou a falar em viagens, jantares a dois ou idas ao cinema. Achei que tinha, finalmente, aprendido a ser feliz. Eu sentia-me, sem margem para dúvidas, muito mais feliz.
Da longa lista de insatisfeitos e queixosos da minha vida, fazem também parte os amigos. Sim, tive uma boa dúzia de verdadeiros amigos ao longo dos anos que, tal como a Antonieta, tornaram a minha existência um inferno, sempre com solicitações, telefonemas e apelos a “gozar a vida”. Cambada de imaturos, pensava eu. Enquanto eu cumpria todas as minhas obrigações e pensava no futuro, eles encontravam-se amiúde para eventos de família, férias, exposições e abraços sem sentido nenhum. Cheguei a perguntar-lhes se aquela utopia toda os ia alimentar, vestir e, provavelmente, sedar quando a velhice se instalasse. De que se iam rir depois quando tivessem uma reforma miserável – ou, pior, nenhuma reforma, quando os filhos andassem por aí a mendigar esmolas ou quando um cancro os levasse, como castigo, claro, por todas as asneiras que faziam. Apesar de tudo o que lhes disse, mantiveram-se a meu lado, de pedra e cal, até a vida lhes minar a capacidade de amar um presunçoso moralista, que nunca faria o mesmo por eles. Cada telefonema deles que deixei de receber, trouxe-me alívio, devo dizer. A minha vida começava, lentamente, a entrar nos eixos. Todos à minha volta pareciam aprender a respeitar-me e a deixar de exigir de mim coisas sem nexo. Como vivia ludibriado o incauto. Que parvo fui.
Muito cedo na minha carreira, o trabalho deixou de ter segredos. Aprendi a fazer dinheiro antes de falar – para confirmação deste facto, muito contribui a memória dos parentes ainda vivos. Contam, a quem está disposto a ouvi-lo, o episódio na casa da Granja, era eu um gaiato ladino e, aparentemente, envergonhado. É preciso acrescentar que, por altura deste acontecimento que marcou para sempre a história da minha vida, eu mal falava. Repetia, como um papagaio, o nome do cão, Max, e Tixa que, queriam as gentes crer, seria um diminutivo amoroso para a minha irmã Patrícia; para tristeza dos meus pais que não me arrancavam um “mamã, papá, mã, pã”, nem com todos os truques do mundo. Essa ideia prosaica caiu por terra, no dia em que me encontraram a gritar “Tixa” como um disco riscado, enquanto uma pequena lagartixa se escondia debaixo da minha cama. Mas, de volta ao episódio do dinheiro que a família sempre adorou e que, claramente, resgatou a fé de todos aqueles que duvidavam das minhas capacidades. Quando o meu léxico se resumia a duas palavras apenas, tivemos uma festa enorme na freguesia e todos os vizinhos saíram à rua, com bancas, música, bebida, comida e muita animação. Pelas três da tarde, a família estava oficialmente em estado de sítio: ninguém sabia de mim, havia horas, e já circulavam rumores de uma série de raptos nas redondezas. Sim, eu estaria morto, trucidado para todo o sempre, ouvia-se por todo o lado. Não vale a pena ficarem aflitos, claramente não morri nem fui raptado, tão pouco esta é uma história com um final triste. Quando me encontraram, eu estava junto da banca de um vizinho que, esse sim, havia sucumbido com um ataque cardíaco fulminante, numa “fugidinha” ao quarto de banho. Não só eu não estava assustado como, na ausência do vizinho, havia vendido tudo o que ele tinha em cima daquela banca. Sem dizer uma palavra e por um valor superior ao pedido pelo vizinho. Nesse dia, aprendi a ganhar dinheiro, a multiplicá-lo. Fi-lo a vida inteira, com a mesma facilidade: era excitante mas nunca foi, verdadeiramente, desafiante. Aceitei este “dom” como parte da missão da minha vida: tinha nascido para multiplicar dinheiro.
Não vou dizer que percebi tudo o que vivi, que aceitei sempre, sem questionar. Todavia, dentro de mim, alimentava secretamente a esperança de um momento de epifania que esclarecesse todas as coisas que não encaixavam. Durante os meus primeiros cinquenta anos, acreditei piamente que tudo faria sentido quando completasse meio século de vida. Quando cheguei aos cinquenta, bom, nada mudou. Apenas morreu em mim a esperança de que isso pudesse vir a acontecer.
Aprendi muito, envelheci rapidamente, mas não amadureci com sapiência. Tudo o que sei da vida não chega, nunca vai chegar. Sem me dar conta, hoje completo setenta e cinco anos. Celebro rodeado de gente que nada espera de mim, que me sabem calado e um pouco avesso a celebrações ou a grandes discursos. Mas hoje descubro em mim uma chama inesperada, não sei explicar. Olho para todos em êxtase e com curiosidade, como se os visse pela primeira vez. Cresce-me esta excitação dentro do peito, sinto-me melancólico e emocional. E tenho tanto para lhes dizer.
A ti, Antonieta, quero dizer-te que te amei a vida toda. Que hoje lamento não ter vivido contigo cada momento a dois que imaginaste para nós. Que hoje percebo que abdicaste da tua felicidade para ficar a meu lado. Agradeço-te por me teres amado tanto. Perdoa-me por ter sido tão cego. Nunca te mereci. Nunca te valorizei mas hoje, sim, hoje vou dizê-lo aqui, em frente de toda a gente, para que o oiças da minha boca, uma vez que seja na vida. De hoje em diante, minha amada, sou eu que te vou convidar para o cinema, sou eu que te vou roubar um beijo pela manhã. De hoje em diante, quero passar o meu tempo a levar-te a todos os lugares onde sempre sonhaste estar, mas onde nunca foste sem mim. Quero namorar-te e honrar-te. Continuas tão bela, Antonieta! De entre todos os homens do mundo, como me foste escolher a mim, este inculto que nunca soube ler-te com sensibilidade, tu que és pura poesia?
Meus filhos, hoje não vos reduzo a coisa nenhuma. Hoje quero, pela primeira vez na vida, dizer que vos amo. Que tenho orgulho em todos vós. Também quero pedir-vos perdão: algumas das vossas escolhas talvez tenham sido, afinal, uma validação das minhas próprias decisões. Sei que não vou apagar uma vida inteira de ausências e de críticas, mas talvez seja bom saberem que o vosso pai, afinal, vos ama tanto.
Meus amigos aqui presentes, estou surpreso e profundamente grato em vos ver: claramente, nunca fiz por merecer a vossa lealdade. Hoje, quero abraçar-vos, sem pressa em vos largar. Quero agradecer a dádiva da amizade que resistiu às investidas do tempo e, sobretudo, ao meu feitio execrável. Sabeis que não presto culto a gurus mas hoje deixai-me baixar a cabeça perante vós, com humildade: não sou digno de vos olhar nos olhos, recebi tão mais do que alguma vez vos dei. Perdoai-me, meus amigos, precisei de ficar velho para conseguir decifrar o código das emoções.
Cantam-me os parabéns em uníssono. Sinto a voz embargada, um reboliço bom dentro da alma. Delicio-me: sou um privilegiado. Como é que esta gente me aturou todos estes anos? Fecho os olhos, ainda oiço os parabéns, e sinto-me feliz. Quero muito partilhar com eles tudo o que sinto, tudo aquilo que nunca souberam. Quero dar-lhes aquilo que nunca lhes dei.
Quando as palmas inundam a sala, é tempo de soprar as velas e deixar falar o coração. Quero agradecer, sobretudo, as dádivas preciosas que me foram dadas. Preparo-me para me levantar mas não sinto as pernas. Por qualquer razão, o meu corpo não me obedece. Embora não me doa nada, quero pedir ajuda, dizer que alguma coisa não está bem. Oiço as palavras na minha cabeça mas a minha boca não se abre. É só quando as gargalhadas dos outros dão lugar a um choro profundo e aflitivo, que percebo a ironia do momento. Não, agora não. Por favor, Deus, universo, alguém, ainda não.
Hoje, quando finalmente entendo o Amor e o Tempo, extingue-se a vida em mim.
Ainda agora cheguei e já estou de saída.
Alexandra Vaz