O meu Eu universal (Eu – 17)
Foto: Two - Leshapyx
Este mês de março terá sido, porventura, um dos piores meses da minha vida. A sucessão de eventos e a sua gravidade fizeram com que assim o classificasse. Poupo-vos os pormenores que transcorreram os seus dias, mas digo-vos que teve despesas inesperadas, doenças e morte.
Não vos pouparei contudo ao evento que dá base a este texto. No início deste fatídico mês tive um episódio urgente do foro cardíaco. Eu, imagine-se! Não que tenha alguma vez pretendido ser imortal, mas na verdade as cogitações ligadas à saúde de cada um, aos 39 anos, não remetem para uma situação dessa ordem. Vamos lá a lugares comuns: faço desporto, não bebo álcool frequentemente, fumo um ou dois cigarros por dia (quando o faço) e tenho cuidados alimentares. Apenas isto deveria ser garante de um coração saudável. Ah! E então o histórico familiar? Pois... talvez tenha sido por ai. Dois avós e um pai com enfartes... Avancemos.
O Eu é pessoal e intransmissível. É talvez o núcleo da nossa constituição pensante, a salvaguarda da nossa relação com o mundo e a fonte das maiores frustrações. O Eu é imortal, na medida da nossa mortalidade. É o bocadinho que gostamos de exibir e o bocadão que, por vezes, temos de esconder.
Eu, sou um individuo. Sou o Rui, quando me perguntam o nome. “Sou eu”, quando toco à campainha e me perguntam “quem é”. Eu sou marido, sou pai, sou filho, sou psicólogo, sou português, etc., etc., etc.. Sou muitas coisas e uma só. Sou EU.
E que Eu é esse?
Acredito que uma parte desse Eu é imutável. O tempo não lhe toca e não o afina. Nasce e cresce connosco. Marca-nos e define-nos. Esse Eu transforma-nos e transforma-se no Eu. É a raiz da árvore, as condições profundas da nossa estrutura cognoscente do interior e do exterior. Porventura aí habitam as coisas más. O primitivo do humano. A inveja, o sadismo, a raiva, o orgulho, para citar alguns. O Homem nasce mau, afirmou um. As crianças são mazinhas, afirmaram muitos. Provavelmente existirá um Eu universal. Não sei... Talvez nunca se saberá.
E depois existe a outra parte. O Eu mutável. O bom. Ou também mau. Dependerá do que cada um quiser. No meu caso, do que Eu quiser.
Esse meu Eu mudou por estes dias. Foi afinado pelo tempo, pela doença e pela mortalidade. Confesso que não foi processo rápido nem intermitente. Digamos que insidiosamente já se prepararia algo do género. Nada do que aconteceu é novidade. O único facto que de facto o foi, foi o facto de me ver deitado numa cama das urgências com o coração... alterado.
Em momento algum pensei que iria morrer. Não pensei que iria deixar viúva e órfãos. Pensei sim no que ainda tenho para fazer, em quem sou e no que ainda quero ser. Prometi que iria cuidar mais de mim. Que iria ao médico mais vezes, para além daquelas que terei de ir agora para se perceber melhor o que se passou. A genética, essa cabra... O coração é apenas mais um órgão na lista de falências biológicas frequentes na família.
Retire-se sempre o positivo das coisas. Tenho agora, conscientemente, um novo Eu. Ou parte dele para dizer verdade. Um novo Eu que me impele na procura de uma data de lugares comuns. Ter objetivos novos de vida. Dar mais valor à família. Procurar a felicidade em tudo o que se faz. Ter mais cuidados com o corpo e por ai fora. O Eu é pessoal e intransmissível. Mas se calhar, quando em sintonia com o grande esquema da vida todos os “eu” procuram as mesmas coisas. Se calhar existe mesmo um grande Eu universal. Todos nós teremos é talvez de passar 2 dias nas urgências para o perceber.
Rui Duarte