Publicado por Mil Razões...
Valéria entrou atabalhoadamente na pastelaria. Atrasada, como em todos os encontros. A Isabel já não estranhava e olhou placidamente para a amiga, ao mesmo tempo que sorvia um aveludado e aromático cappuccino.
- Bom dia, amiga! Chegaste há muito tempo?
As amigas abraçaram-se entre sorrisos e Isabel introduziu a sua companhia:
- Valéria, desta vez consegui convencer a Rute a juntar-se ao nosso pequeno-almoço mensal!
- Mas é uma vez sem repetição! – afirmou, convicta, a jovem, enquanto trocava um par de beijos cordiais com Valéria.
- Então, porquê? Somos assim tão más companhias? – ironizou Valéria. Isabel abriu um riso rasgado.
– Nada disso, Valéria! Aqui a Rute é de poucas palavras, mas o que ela quer dizer é que não quer vir intrometer-se no nosso encontro de amigas. E já para a trazer hoje, teve que ser de arrasto!
- Não há problema nenhum, Rute. Assim, até temos mais tema de conversa…
Valéria procurou imprimir um tom descontraído a estas palavras, que em nada correspondiam à verdade. Ela tinha mantido a esperança de que Isabel não fosse encontrar tão cedo uma inquilina para partilhar o apartamento, pois imaginava-se a perder o título de melhor amiga quando Isabel passasse a conviver diariamente com outra rapariga, seguramente mais divertida e interessante do que ela própria.
Mas a inquilina apareceu, e nas últimas conversas Isabel ia fazendo cada vez mais referências à sua nova companheira de casa. E ali estava ela, com uma presença tão marcante que roçava a arrogância. Procurou marcar território:
- Então, estás a adaptar-te bem ao estilo tresloucado desta minha amiga?
Isabel desatou a rir.
- Eu não sou tresloucada, sou criativa! Só porque a minha casa não segue os padrões de organização estabelecidos pela sociedade, não significa que não esteja bem!
Rute assentiu com a cabeça e acrescentou:
- Há que respeitar o estilo de vida de cada um. E nós estamos a entender-nos muito bem nesse sentido.
- É verdade! Cada uma trata do seu quarto, cada uma tem um lado do fogão, as suas prateleiras do frigorífico… um casamento feliz! – rematou Isabel, piscando o olho a Rute.
Valéria ouviu as duas com um misto de espanto e desconforto. Isabel geria a casa um pouco como geria a sua vida, no improviso, e Valéria acreditava que isso dificultaria a missão de arranjar alguém para dividir a despesa pesada do pequeno T1+1. Talvez por isso, ou talvez para agradar, ela nunca tinha dito diretamente à amiga que seria incapaz de viver em semelhante pardieiro. E agora aparecia esta… personagem a concordar com tudo como se fosse normalíssimo?
Felizmente, Isabel alterou o rumo da conversa:
- E como estão os teus miúdos?
Depois de pedir uma meia de leite de cevada e uma torrada, Valéria suspirou e desabafou:
- Olha, vão bem, do ponto de vista físico. Mas estão ambos a passar por uma fase verdadeiramente difícil! Birras, teimosia, conflitos constantes com coisas tão simples como o que comer ao pequeno-almoço, ou que sapatos calçar, que transformam o nosso dia a dia num desafio! E depois o Miguel…
- Não me digas, o Miguel também anda birrento? – indagou Isabel entre risos.
- Eu e o Miguel não nos entendemos na forma como havemos de reagir a estes comportamentos desviantes dos miúdos. Ele fica furioso quando eles se portam mal, e eu também não gosto, é claro. Mas o Miguel acha que tem que os disciplinar pelo castigo e pela bofetada. Ora eu não concordo, e daí a bocado, em vez de estarmos a controlar uma birra ou a corrigir um mau comportamento, estamos a discutir um com o outro: eu a reclamar que ele está a exagerar e ele a acusar-me de ser permissiva e de deixar os miúdos fazerem tudo o que querem…
- Está complicado, então… - Isabel não sabia bem o que dizer. Ela conhecia bem os filhos de Valéria, David e Bea. O mais velho, com 9 anos, era um miúdo querido e sossegado mas um tanto ou quanto mimado. E o nascimento da irmã tinha vindo acentuar esse comportamento. Do alto dos seus 3 anitos, Bea tinha tanto de amorosa como de intempestiva. Com uma personalidade bem vincada, tão depressa estava a rir à gargalhada como a seguir se atirava para o chão a espernear entre gritos. Não invejava a amiga, apesar desta estar constantemente a realçar as alegrias da maternidade, procurando convencê-la a seguir o mesmo caminho. Mas, sempre que lhe telefonava para casa, encontrava-a no meio de gritos ou queixumes dos miúdos, ou sem fôlego, afogada em tabuleiros transbordantes de roupa para passar, planeamentos de menus semanais ou limpezas aborrecidas. Ufa! - como apreciava a sua liberdade! Mas, por amizade a Valéria, esforçava-se por mostrar interesse nos seus dramas familiares.
Procurava as palavras certas para consolar a sua amiga, quando Rute interveio:
- A educação é um processo em que ambos os pais têm que remar para o mesmo lado, senão ficam à deriva.
“Que bela verdade de La Palisse!”, vociferou mentalmente Valéria. As suas faces ruborizaram-se de irritação e Isabel, apercebendo-se disso, aligeirou:
- Eu cá não sei o que faria, mas será que tu e o Miguel não podem sentar-se e definir, para cada birra dos miúdos, uma ação concreta com a qual ambos concordem? Do tipo: Se o David não se sentar a tomar o pequeno-almoço quando o mandam, não pode escolher os cereais que põe no leite.
- Fosse assim tão simples, Isabel! A questão é que nós temos perspetivas completamente opostas neste campo. Ele é muito rígido, eu sou mais flexível. Eu sou a favor de mantermos a calma e tentarmos conversar com os miúdos para eles perceberem o que se espera deles. Já o Miguel espera que um “Não!” seja ouvido como ordem irrefutável e que eles obedeçam cegamente e, como quase nunca o fazem, ele aplica-lhes logo um castigo quase sempre desproporcionado. E então quando lhes levanta a mão, eu passo-me dos carretos!
- Então, és contra os castigos corporais? – perguntou Rute.
Valéria manteve-se em silêncio durante alguns segundos, em parte porque não lhe apetecia falar com aquela gatuna de amigas, em parte porque não sabia bem o que responder. A sua voz soou mais trémula do que desejava:
- No geral, sim. Quer dizer, eu não vou dizer que já não tenha dado um ou outro calduço aos meus meninos quando eles passaram das marcas, mas a verdade é que o bater é uma reação normalmente irracional e de descontrolo mental. E eu acredito que uma palmada deve surgir após reflexão e quando nos apercebemos de que, naquele momento, não há mais nada que possamos fazer para travar um mau comportamento.
- Mas todas nós que aqui estamos levámos, com certeza, umas palmadas em crianças e isso colocou-nos na linha, não? – sugeriu delicadamente Isabel.
- Antigamente fazia-se muita coisa errada, Isabel! Não podemos ir por aí! – Valéria apoiou a cara entre as mãos, cotovelos na mesa, ladeando a torrada que ia amornando e suspirou:
- Mas às vezes, nem eu sei o que é melhor, mais correto… O que sei é que não suporto ver o Miguel ralhar-lhes desmesuradamente, principalmente ao David, que já tem idade para participar num diálogo. Além de que não o podemos anular como pessoa que é!
- E então, os teus métodos baseados no diálogo obtêm bons resultados? - questionou Rute, genuinamente interessada.
- Resultados? Os resultados não são visíveis no imediato, acho eu… Isto é como uma semente que se lança e vai crescendo… Mas é muito frustrante lidarmos com as mesmas birrinhas todos os dias, repetirmos vezes sem conta as mesmas coisas… Parece uma conversa de surdos.
- Lá está, se calhar o problema está aí. Tu pretendes fazer da relação com os teus filhos uma democracia quando, na realidade, se está a transformar numa ditadura. E são eles no papel de ditadores, não?
Valéria sentiu-se acossada com a crueza daquelas palavras. Detestava aquela rapariga e a altivez com que tecia os seus comentários. Sabia lá ela o que era viver em permanência nos dilemas carinho / autoridade, negociação / obediência… Ser educadora, progenitora, amiga, vigilante, confidente, parceira de brincadeiras e gerir tudo isso com uma postura concreta em cada um desses papéis, era complexo ao ponto de extenuar! “Mas que espero eu desta conversa? Respostas às minhas dúvidas?” Farta de teorias estava ela, que já tinha lido meia Internet subordinada aos temas da parentalidade e meia dúzia de livros sobre educação. Não podia esperar respostas úteis de quem não tinha ainda a experiência e, consequentemente, possíveis soluções. Sim, que ela, como mãe de dois, já sabia dar respostas a questões como “O que fazer se a criança não quer comer a sopa?” ou “Como se faz o desfralde do bebé?” Mas quantos filhos precisaria ela de ter para encontrar a fórmula certa para lidar com birras, impertinências, desobediências e asneiras? E, mais do que isso, fazer com que o pai estivesse de acordo?
De qualquer modo aquela era uma conversa que não valia a pena ter ali. Não com Isabel e Rute. Ao mesmo tempo que pensava tudo isto, em catadupa, abocanhou uma tira de torrada já fria e comentou, encerrando o assunto:
- Realmente, olhando para a realidade mundial, dá mesmo para concluir que a democracia é um regime inoperante! Assim que saia daqui, vou comprar uma colher de pau, que era assim que a minha mãe me punha na linha! E por falar em colher de pau, Isabel, sempre queres ir ao Ikea no sábado? Nós vamos cedinho; se quiseres boleia tens que te mentalizar que às 09h00 estamos a passar em tua casa!
- Às 09h00?! A essa hora só se for de pijama! Que dizes, Rute, vamos aproveitar a boleia?
Sandrapep