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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

06
Abr14

Infância esquecida (Infância – 3)

Publicado por Mil Razões...

 

No fim de uma tarde tão bem passada, com os seus meninos – entre risadas, um ou outro ralhete e dezenas de abraços e beijocas –, era tempo de dar continuidade às arrumações de primavera. As roupas que se iam soltando das molas cheiravam a limpo, mas também a doces memórias, dos tempos em que o seu pequeno era mesmo pequeno (tanto aos olhos da sua mãe como aos do resto do mundo). Era tempo de as passar para o novo pequeno ser que crescia na casa.

Com uma voz demasiado entaramelada para o seu gosto, exteriorizou:

- Ainda me lembro, como se fosse hoje, de te ver vestido com estas roupas, filho!

- Mostra, mãe – virou-se o rapaz interessado. E retorquiu, com um sorriso: - Eu não me lembro nada destas roupas!

Aquele comentário atingiu-a como um raio. O seu menino, que se lembra sempre dos percursos de automóvel, dos filmes e dos livros, de lugares e de sons, pr’aí desde os seus… 4 anos… Aquela roupa era de quando ele tinha apenas 2…

E o que é feito dessas memórias? Que tristeza, pensou ela com uma ponta de amargura. A primeira infância está definida pelos especialistas como o período da vida que compreende o 1º dia até ao 6º ano da vida. E, no entanto, dessa 1ª fase apenas se guarda uma ínfima parte de recordações.

E, olhando para a sua princesita, 2 anitos quase completos, refletiu que ela, tal como o mano, nunca se iria lembrar das… (parecem mil, mas é um exagero) muitas vezes que engoliu o jantar a correr para garantir que a deitava a horas, das (sim, aqui os números são mais exatos) quase 100 semanas de noites passadas num vaivém entre quartos - ora para pôr a chupeta, ora para dar de mamar… - das centenas de xixis que a obrigaram a trocar fraldas, pijamas e às vezes camas (ainda hoje!).

Sobretudo, os seus 2 tesouros não se iriam nunca lembrar de que a mãe nunca deixava de lhes dar banho, aconchegar os lençóis ou contar uma história, mesmo que por vezes alguma dor ou o extremo cansaço prometessem não a deixar cumprir a tarefa.

“Mas, autovitimização à parte, a natureza errou aqui” – pensou ela, um pouco mais (?) racional.

A melhor época da vida, em que tudo nos é perdoado, em que (quase) tudo nos é permitido, em que se passa o tempo a dormir, brincar e a descobrir o mundo, e nada de nos lembrarmos disso! A 1ª infância deveria ser um prémio que todos recebêssemos no final da vida: os melhores anos antes do fim. Teria é de se lhe mudar o nome, para última infância, talvez?

Ou, melhor ainda! Que tal se todos nós tivéssemos o direito de voltar a essa infância, sei lá, uma vez por mês? Chupeta, Cerelac, beber leitinho na cama, colo, muito colo a qualquer ora do dia (ou da madrugada…), construir torres em legos, ouvir histórias, ter pessoas a bater-nos palmas e a rir das nossas graças e a fazer-nos sentir o centro do mundo!...

Ai, saudades dessa infância de que não me lembro!

 

Sandrapep

 

04
Abr14

O que fica (Infância – 2)

Publicado por Mil Razões...

 

Era uma vez…

Não, não me lembro de me terem dito muitas vezes esta expressão. Mas lembro-me de me contarem muitas histórias, cada um à sua maneira.

Os avós contavam como fora a sua juventude, como surgiram os seus casamentos, como era na época em que a menstruação vinha pela primeira vez e não existiam as “modernices” de hoje, como foram depiladas pela primeira vez e o que fazer para que esse tormento não se repetisse vezes sem conta, como começaram a namorar sem que os pais soubessem, como fugiram das guerras e conseguiram encontrar um local calmo para viver… Todas elas situações impensáveis nos dias de hoje mas que contarei aos que vierem depois de mim para que nunca percam a sabedoria que os nossos antepassados tinham.

Foi isso que ficou da minha infância, rodeada de pessoas sábias mesmo sem a escolaridade obrigatória ou analfabetas até. Sábias porque tinham rugas, que eu via como caminhos já percorridos e que me levariam para longe, para uma vida cheia de aventuras como as deles.

Os pais não contaram muitas histórias diretamente… Contaram-me que para viver bem temos que trabalhar muito. Contaram-me que a família é o mais importante e que essa mesma família, por vezes, tem que fazer escolhas difíceis que levam à tristeza em alguns momentos. Escolhas como o ralhar e pôr de castigo quem mais amamos, apenas porque sabemos que é o correto e que dará bons frutos no futuro.

Foi isso que ficou da minha infância, as escolhas mais difíceis são feitas por aqueles que mais amamos. Difíceis porque, na grande maioria das vezes, para um futuro melhor, privamo-nos da sua presença e dos seus sorrisos.

A irmã mais velha contou muitas histórias… Mesmo sem “Era uma vez…”, ela conseguiu criar na minha mente um mundo imaginário, sonhos, lições do dia-a-dia, formas de lidar com os mais velhos, formas de planear o futuro, a importância de fazer hoje para conseguir amanhã.

Foi isso que ficou da minha infância, as diferentes formas de estar que cada indivíduo pode ter consoante as situações, nunca deixando de ser nós próprios.

O que posso mais dizer sobre a infância? Nada, pois até hoje tento revivê-la, mesmo que isso me leve a momentos de melancolia por saber que nada será como era. Escolho revivê-la para nunca me esquecer o que realmente é importante e conseguir ensinar a quem vem a seguir, para que nunca me esqueça do meu EU e das pessoas que o fizeram e que são as mais importantes.

 

Sónia Abrantes

 

01
Abr14

Nas nuvens (Infância – 1)

Publicado por Mil Razões...

 

Sentiu-a andar de um quarto para o outro, abrir armários e fechar gavetas. Chamou-o da porta naquele tom de voz que não é nem zangado nem irritado, simplesmente apressado. O dia mal começou, ainda assim, e, enquanto desce para a cozinha, ouve-a queixar-se de falta de tempo. Chega-lhe o tilintar de talheres, água a correr da torneira. Ao quarto já chega o cheirinho a torradas e café. Aquieta-se na cama e deixa-se banhar pela luz do sol e pela suave brisa matinal. Aproxima-se da janela e encosta-se ao parapeito. Olha o terraço em baixo. Por todo o lado pistas a denunciar as brincadeiras do dia anterior. Lá está o seu papagaio de papel, tão grande e colorido que faz inveja aos amigos. Deu-lho o pai, já não se lembre porquê mas isso também não importa, o que importa mesmo é que ele adorou. Foi paixão à primeira vista, rapidamente aprendeu a manobrá-lo e, com tanta agilidade, que os irmãos e os colegas da escola lhe pedem para os ensinar. E ele, porque gosta do seu papagaio e quer que todos brinquem com ele, ensina-os. Mas não ensina tudo. A beleza daquela manhã anima-o. De novo aquele desejo de viajar. Não conta a ninguém como consegue fazê-lo, mas num instante salta para o papagaio e começa a subir em direção ao céu. Sente o chão a fugir-lhe dos pés, eleva-se, ganha altura. Quando sobrevoa o canteiro das rosas já não lhes sente o perfume, o aroma perde-se no ar. Vislumbra no fim do jardim as violetas e as tulipas protegidas do sol e do vento pelos agapantos, flores robustas e azuis, quase tão azuis como o céu que agora atravessa no seu papagaio de papel. A bicicleta, encostada ao canteiro das margaridas, ali esquecida desde que o papagaio chegou, parece agora ridícula na sua pequenez. Já passou a sebe de lantanas que limitam o jardim da casa. Dirige-se para a parte norte da cidade. Na praça, junto à igreja, bandos de crianças brincam às escondidas, correm umas atrás das outras, agarram-se, rebolam pelo chão. Não as consegue ouvir, mas sabe que riem.

Dirige o papagaio para uma nuvem branca que vai a passar. Parece frágil mas arrisca e salta para ela. A nuvem acusa o peso, parece que se vai despenhar, mas não, refaz-se da carga e recoloca-se na altura. É fofinha e tem uma forma estranha, mas deixa-se moldar. Ele ajusta-a ao seu corpo da melhor maneira, levanta-a mais de um dos lados para encostar a cabeça e poder olhar para baixo sem esforço. Sente-se mergulhar em pequenas gotas de orvalho e sente um arrepio, mas àquela hora o sol já é tão quente que aquele fresquinho sabe-lhe bem. Deixa-se ficar. As crianças continuam a brincar. Um grupo de meninas salta à corda, outro brinca com uma pedrinha que empurram com um pé enquanto o outro, levantado, tenta equilibrar o corpo, é o jogo da macaca. Afastado delas parece-lhe ver o Pedro que aponta para um grupo de rapazes, está a escolher a equipa para o jogo de futebol. O jogo começa. Estão muito empolgados, há um menino que para a bola nos pés e retém-na mais tempo do que é permitido. Levanta-se um coro de protestos, vê-se que discutem, empurram-se mas o jogo prossegue. No final está tudo bem e todos de bem uns com os outros. Salta de novo para o papagaio e prossegue viagem. Passa pelo jardim da vila. Os bebés correm desajeitadamente pela relva sobre o olhar atento dos pais. No lago, os patos mergulham e vêm de novo à superfície numa exibição graciosa. O lago termina numa ponte pequena de madeira que dá acesso à escola. Sobressalta-se. Alguém grita o seu nome.

Está na hora de sair para a escola e tu ainda na cama?  Novamente a mãe mas ainda mais apressada do que antes. Vais chegar outra vez atrasado. Com tanta preguiça não sei o que será de ti no futuro. Já sabes o que vais fazer na vida?

Sim, já sabe. Quer ser arquiteto.

Arquiteto como o pai? Pergunta a mãe.

Não, não como o pai que desenha casas; eu quero ser arquiteto de pessoas.

Baixa a cabeça para não ver o riso de troça dos irmãos. Espera a reação da mãe, mas ela apenas pergunta: - e o que vais fazer com isso?

Vou desenhar pais e mães que não temam pelo futuro dos filhos. Pais que ajudem os filhos a viver a infância como ela deve ser vivida, com brincadeiras, com tempo para descansar, com tempo para fazer amigos. Amigos reais com quem possam passear, conversar, zangar-se, crescer, descobrir o mundo. Claro, os meninos também têm que ir à escola aprender coisas, mas os pais que eu desenhar não os vão obrigar a correr da escola para o instituto de línguas, para as aulas de música, para os treinos de futebol, para o ténis, ou outra qualquer modalidade, na esperança de que os filhos venham a ser craques em alguma coisa que possa garantir um bom futuro. Vou desenhar pais que vivam a infância dos filhos com descontração e que o único medo deles seja não conseguirem transmitir o quanto os amam. Pronto é isto que eu quero ser! Disse quase sem respirar.

Este meu filho está sempre nas nuvens, não sei onde vai buscar estas ideias. Desabafou a mãe. Mas o beijo de despedida desse dia quando o deixou na escola, não foi igual aos beijos anteriores.

 

Cidália Carvalho

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Porto | Portugal

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