Nas nuvens (Infância – 1)
Sentiu-a andar de um quarto para o outro, abrir armários e fechar gavetas. Chamou-o da porta naquele tom de voz que não é nem zangado nem irritado, simplesmente apressado. O dia mal começou, ainda assim, e, enquanto desce para a cozinha, ouve-a queixar-se de falta de tempo. Chega-lhe o tilintar de talheres, água a correr da torneira. Ao quarto já chega o cheirinho a torradas e café. Aquieta-se na cama e deixa-se banhar pela luz do sol e pela suave brisa matinal. Aproxima-se da janela e encosta-se ao parapeito. Olha o terraço em baixo. Por todo o lado pistas a denunciar as brincadeiras do dia anterior. Lá está o seu papagaio de papel, tão grande e colorido que faz inveja aos amigos. Deu-lho o pai, já não se lembre porquê mas isso também não importa, o que importa mesmo é que ele adorou. Foi paixão à primeira vista, rapidamente aprendeu a manobrá-lo e, com tanta agilidade, que os irmãos e os colegas da escola lhe pedem para os ensinar. E ele, porque gosta do seu papagaio e quer que todos brinquem com ele, ensina-os. Mas não ensina tudo. A beleza daquela manhã anima-o. De novo aquele desejo de viajar. Não conta a ninguém como consegue fazê-lo, mas num instante salta para o papagaio e começa a subir em direção ao céu. Sente o chão a fugir-lhe dos pés, eleva-se, ganha altura. Quando sobrevoa o canteiro das rosas já não lhes sente o perfume, o aroma perde-se no ar. Vislumbra no fim do jardim as violetas e as tulipas protegidas do sol e do vento pelos agapantos, flores robustas e azuis, quase tão azuis como o céu que agora atravessa no seu papagaio de papel. A bicicleta, encostada ao canteiro das margaridas, ali esquecida desde que o papagaio chegou, parece agora ridícula na sua pequenez. Já passou a sebe de lantanas que limitam o jardim da casa. Dirige-se para a parte norte da cidade. Na praça, junto à igreja, bandos de crianças brincam às escondidas, correm umas atrás das outras, agarram-se, rebolam pelo chão. Não as consegue ouvir, mas sabe que riem.
Dirige o papagaio para uma nuvem branca que vai a passar. Parece frágil mas arrisca e salta para ela. A nuvem acusa o peso, parece que se vai despenhar, mas não, refaz-se da carga e recoloca-se na altura. É fofinha e tem uma forma estranha, mas deixa-se moldar. Ele ajusta-a ao seu corpo da melhor maneira, levanta-a mais de um dos lados para encostar a cabeça e poder olhar para baixo sem esforço. Sente-se mergulhar em pequenas gotas de orvalho e sente um arrepio, mas àquela hora o sol já é tão quente que aquele fresquinho sabe-lhe bem. Deixa-se ficar. As crianças continuam a brincar. Um grupo de meninas salta à corda, outro brinca com uma pedrinha que empurram com um pé enquanto o outro, levantado, tenta equilibrar o corpo, é o jogo da macaca. Afastado delas parece-lhe ver o Pedro que aponta para um grupo de rapazes, está a escolher a equipa para o jogo de futebol. O jogo começa. Estão muito empolgados, há um menino que para a bola nos pés e retém-na mais tempo do que é permitido. Levanta-se um coro de protestos, vê-se que discutem, empurram-se mas o jogo prossegue. No final está tudo bem e todos de bem uns com os outros. Salta de novo para o papagaio e prossegue viagem. Passa pelo jardim da vila. Os bebés correm desajeitadamente pela relva sobre o olhar atento dos pais. No lago, os patos mergulham e vêm de novo à superfície numa exibição graciosa. O lago termina numa ponte pequena de madeira que dá acesso à escola. Sobressalta-se. Alguém grita o seu nome.
Está na hora de sair para a escola e tu ainda na cama? Novamente a mãe mas ainda mais apressada do que antes. Vais chegar outra vez atrasado. Com tanta preguiça não sei o que será de ti no futuro. Já sabes o que vais fazer na vida?
Sim, já sabe. Quer ser arquiteto.
Arquiteto como o pai? Pergunta a mãe.
Não, não como o pai que desenha casas; eu quero ser arquiteto de pessoas.
Baixa a cabeça para não ver o riso de troça dos irmãos. Espera a reação da mãe, mas ela apenas pergunta: - e o que vais fazer com isso?
Vou desenhar pais e mães que não temam pelo futuro dos filhos. Pais que ajudem os filhos a viver a infância como ela deve ser vivida, com brincadeiras, com tempo para descansar, com tempo para fazer amigos. Amigos reais com quem possam passear, conversar, zangar-se, crescer, descobrir o mundo. Claro, os meninos também têm que ir à escola aprender coisas, mas os pais que eu desenhar não os vão obrigar a correr da escola para o instituto de línguas, para as aulas de música, para os treinos de futebol, para o ténis, ou outra qualquer modalidade, na esperança de que os filhos venham a ser craques em alguma coisa que possa garantir um bom futuro. Vou desenhar pais que vivam a infância dos filhos com descontração e que o único medo deles seja não conseguirem transmitir o quanto os amam. Pronto é isto que eu quero ser! Disse quase sem respirar.
Este meu filho está sempre nas nuvens, não sei onde vai buscar estas ideias. Desabafou a mãe. Mas o beijo de despedida desse dia quando o deixou na escola, não foi igual aos beijos anteriores.
Cidália Carvalho