Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

01
Abr14

Nas nuvens (Infância – 1)

Publicado por Mil Razões...

 

Sentiu-a andar de um quarto para o outro, abrir armários e fechar gavetas. Chamou-o da porta naquele tom de voz que não é nem zangado nem irritado, simplesmente apressado. O dia mal começou, ainda assim, e, enquanto desce para a cozinha, ouve-a queixar-se de falta de tempo. Chega-lhe o tilintar de talheres, água a correr da torneira. Ao quarto já chega o cheirinho a torradas e café. Aquieta-se na cama e deixa-se banhar pela luz do sol e pela suave brisa matinal. Aproxima-se da janela e encosta-se ao parapeito. Olha o terraço em baixo. Por todo o lado pistas a denunciar as brincadeiras do dia anterior. Lá está o seu papagaio de papel, tão grande e colorido que faz inveja aos amigos. Deu-lho o pai, já não se lembre porquê mas isso também não importa, o que importa mesmo é que ele adorou. Foi paixão à primeira vista, rapidamente aprendeu a manobrá-lo e, com tanta agilidade, que os irmãos e os colegas da escola lhe pedem para os ensinar. E ele, porque gosta do seu papagaio e quer que todos brinquem com ele, ensina-os. Mas não ensina tudo. A beleza daquela manhã anima-o. De novo aquele desejo de viajar. Não conta a ninguém como consegue fazê-lo, mas num instante salta para o papagaio e começa a subir em direção ao céu. Sente o chão a fugir-lhe dos pés, eleva-se, ganha altura. Quando sobrevoa o canteiro das rosas já não lhes sente o perfume, o aroma perde-se no ar. Vislumbra no fim do jardim as violetas e as tulipas protegidas do sol e do vento pelos agapantos, flores robustas e azuis, quase tão azuis como o céu que agora atravessa no seu papagaio de papel. A bicicleta, encostada ao canteiro das margaridas, ali esquecida desde que o papagaio chegou, parece agora ridícula na sua pequenez. Já passou a sebe de lantanas que limitam o jardim da casa. Dirige-se para a parte norte da cidade. Na praça, junto à igreja, bandos de crianças brincam às escondidas, correm umas atrás das outras, agarram-se, rebolam pelo chão. Não as consegue ouvir, mas sabe que riem.

Dirige o papagaio para uma nuvem branca que vai a passar. Parece frágil mas arrisca e salta para ela. A nuvem acusa o peso, parece que se vai despenhar, mas não, refaz-se da carga e recoloca-se na altura. É fofinha e tem uma forma estranha, mas deixa-se moldar. Ele ajusta-a ao seu corpo da melhor maneira, levanta-a mais de um dos lados para encostar a cabeça e poder olhar para baixo sem esforço. Sente-se mergulhar em pequenas gotas de orvalho e sente um arrepio, mas àquela hora o sol já é tão quente que aquele fresquinho sabe-lhe bem. Deixa-se ficar. As crianças continuam a brincar. Um grupo de meninas salta à corda, outro brinca com uma pedrinha que empurram com um pé enquanto o outro, levantado, tenta equilibrar o corpo, é o jogo da macaca. Afastado delas parece-lhe ver o Pedro que aponta para um grupo de rapazes, está a escolher a equipa para o jogo de futebol. O jogo começa. Estão muito empolgados, há um menino que para a bola nos pés e retém-na mais tempo do que é permitido. Levanta-se um coro de protestos, vê-se que discutem, empurram-se mas o jogo prossegue. No final está tudo bem e todos de bem uns com os outros. Salta de novo para o papagaio e prossegue viagem. Passa pelo jardim da vila. Os bebés correm desajeitadamente pela relva sobre o olhar atento dos pais. No lago, os patos mergulham e vêm de novo à superfície numa exibição graciosa. O lago termina numa ponte pequena de madeira que dá acesso à escola. Sobressalta-se. Alguém grita o seu nome.

Está na hora de sair para a escola e tu ainda na cama?  Novamente a mãe mas ainda mais apressada do que antes. Vais chegar outra vez atrasado. Com tanta preguiça não sei o que será de ti no futuro. Já sabes o que vais fazer na vida?

Sim, já sabe. Quer ser arquiteto.

Arquiteto como o pai? Pergunta a mãe.

Não, não como o pai que desenha casas; eu quero ser arquiteto de pessoas.

Baixa a cabeça para não ver o riso de troça dos irmãos. Espera a reação da mãe, mas ela apenas pergunta: - e o que vais fazer com isso?

Vou desenhar pais e mães que não temam pelo futuro dos filhos. Pais que ajudem os filhos a viver a infância como ela deve ser vivida, com brincadeiras, com tempo para descansar, com tempo para fazer amigos. Amigos reais com quem possam passear, conversar, zangar-se, crescer, descobrir o mundo. Claro, os meninos também têm que ir à escola aprender coisas, mas os pais que eu desenhar não os vão obrigar a correr da escola para o instituto de línguas, para as aulas de música, para os treinos de futebol, para o ténis, ou outra qualquer modalidade, na esperança de que os filhos venham a ser craques em alguma coisa que possa garantir um bom futuro. Vou desenhar pais que vivam a infância dos filhos com descontração e que o único medo deles seja não conseguirem transmitir o quanto os amam. Pronto é isto que eu quero ser! Disse quase sem respirar.

Este meu filho está sempre nas nuvens, não sei onde vai buscar estas ideias. Desabafou a mãe. Mas o beijo de despedida desse dia quando o deixou na escola, não foi igual aos beijos anteriores.

 

Cidália Carvalho

Porto | Portugal

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Equipa

> Alexandra Vaz

> Cidália Carvalho

> Ermelinda Macedo

> Fernando Couto

> Inês Ramos

> Jorge Saraiva

> José Azevedo

> Maria João Enes

> Marisa Fernandes

> Rui Duarte

> Sara Silva

> Sónia Abrantes

> Teresa Teixeira

Calendário

Abril 2014

D S T Q Q S S
12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
27282930

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D

Comentários recentes

Ligações

Candidatos a Articulistas

Amigos do Mil Razões...

Apoio emocional

Promoção da saúde