Organização do Eu (desOrganização - 13)
A Ana era ainda uma jovem menina quando foi violentada pela primeira vez. Uma dor que lhe tomou a alma de tal forma que deixou de se reconhecer. "Porquê eu?" era a sua pergunta mais frequente. Apesar de ter sido um estranho, sabia que em casa ninguém compreenderia o que tinha passado e, por isso mesmo, nunca contou a ninguém. Para a família e amigos, continuava a ser a criança que era, responsável e com boas notas, apenas um pouco rebelde na sua maneira de ser.
Passados dois anos o seu avô, a única pessoa que a conseguia confortar apenas com o olhar, morreu de um acidente estúpido que nunca ninguém lhe soube descrever. Mas como seria possível morrer assim de forma tão rápida e inesperada, sem que ninguém lhe dissesse uma única palavra? Como poderia aceitar esse vazio inexplicável?
Meses mais tarde a sua família desconstruiu-se e já nada era reconhecível: nem o estar, nem o ser, nem o ficar. E foi nesse momento que Ana soube que tinha que partir. Como poderia ela ficar no meio daqueles escombros de uma família com que não se identificava? Mas na verdade, no momento que se preparava, surgiram mil argumentos e desculpas e não foi... ficou!
Os anos foram passando e aqueles escombros que inicialmente repudiou, tornaram-se a sua casa, a sua forma de estar e até mesmo o seu ser. Sabia que nada de bom poderia vir e a descrença pela vida e pela felicidade era total. Como poderiam existir pessoas que se diziam felizes? Achava que certamente o diriam apenas da boca para fora, porque acreditava que a felicidade não existia e nada poderia ser tão cor-de-rosa quanto a tentavam pintar.
Depois de terminar o curso, de ter um bom emprego e um bom carro, Ana poderia ser considerada uma pessoa bem sucedida. Mas ela sabia-se derrotada. Derrotada por eles, derrotada pela vida e por uma série situações que não controlou e que agora já não conhecia o caminho inverso. Nessa altura sentiu que tinha chegado a um cruzamento: lutar ou desistir eram apenas as duas opções.
Desistir sem dúvida era o mais fácil, mas… como fazer o mais fácil se toda a sua vida tinha sido difícil? Porque não procurar o tal pincel da vida cor-de-rosa de que lhe falaram em tempos?
Pouco mais de um mês depois, estava sentada na esplanada de uma pastelaria na rua mais agitada da cidade. Faltavam poucos dias para o Natal e a agitação de carros e de pessoas era tanta que lhe fazia confusão. Ela estava simplesmente ali sentada, estática, com o seu interior apertado e sem reação... mas aquele momento não a preocupava, sabia que não era vazio o que sentia, mas nervoso. Olhou para o relógio: Faltavam 20 minutos para a primeira sessão que tinha marcado na semana anterior. O nome recomendado era Rita e essa era a única coisa que sabia dela. Depois de pagar a conta do lanche, seguiu para o prédio que olhava de longe. Subiu ao terceiro andar e entrou naquela pequena clínica embalada por uma música dos anos setenta. E tal como a música, todo o ambiente parecia ter parado décadas atrás. O que a esperaria para além daquela outra porta fechada que adivinhava ser a do consultório?
A verdade é que por detrás daquela porta saíram longas conversas, que ela não sabia se eram com a Rita ou se consigo mesma. Semana após semana, apenas as duas sabiam o que se libertava ali, um mundo construído muito para além dos escombros que vivia.
Os anos passaram. A Rita continua a trabalhar naquele pequeno gabinete e a receber pacientes hora após hora. A Ana, essa, já seguiu o seu caminho. Saiu de casa, deixou a família que a maltratava sem saber, encontrou um amor que vive em pleno e está grávida de 8 meses. Ficou radiante quando soube que iria ter uma menina, e já lhe pintou o quarto… de cor-de-rosa!
Cátia Azenha (articulista convidada)