Nada mais estável do que a mudança (Risco – 6)
A dada altura os olhares cruzaram-se. Já tinha acontecido, mas daquela vez foi diferente. Naquele instante, naquele preciso instante, deixaram de ser as mesmas pessoas.
Tudo começou quando o destino os juntou no mesmo local de trabalho. Deu-se a primeira reunião, a segunda e as seguintes. Trocaram impressões - ora concordando ora discordando - numa crescente admiração mútua. Cada achega profissional tinha agora um cunho pessoal. Onde havia um técnico desprovido de pessoa, passou a haver uma pessoa desprovida de técnico. As opiniões passaram a ser dadas e acolhidas com outra importância. O que tinha piada, tinha mesmo piada e o que desconcertava, desconcertava a valer. O meio-termo deu lugar a posições sempre extremadas, para o bem e para o mal.
Enquanto os lábios não selaram o que os olhos diziam, os dias, mesmo os mais cinzentos, eram todos de sol radiante. Foram tempos maravilhosos. Momentos que fundaram solidamente a história daqueles dois. Pedaços de vida donde nasceu tudo o que se lhes seguiu.
Os primeiros anos foram encantadores: viajaram, fizeram projetos, falaram do futuro (como se fosse acontecer dali a pouco), superaram sem dificuldades as divergências mais divergentes.
Certo dia, numa chegada a casa igual a tantas outras, um "olá!" saiu com uma quase-impercetível pronúncia de enfado (um discreto apontamento na voz que só é detetado por ouvidos especializados naquele tipo de "olás!").
- Então? Que foi?
- Nada!
- Deve ser má disposição - pensou de si para si. - Às vezes vem assim. É raro mas acontece. Não deve ser nada.
Errado! O "olá!" seguinte estava mais próximo de um "adeus!". Surda e secretamente estava a acontecer o que acontece à maioria dos casais: desgaste. E quando o desgaste se instala abrem-se as portas da tentação. O mundo fora da relação ganha nova importância. Passa a haver recompensas que validam o risco de levantar a cabeça e olhar em redor.
Também. convenhamos, não há quem aguente uma, duas décadas a mesma pessoa, as mesmas roupas, as mesmas piadas, os mesmos amigos.
E então lembrou-se que um casal tem que se reinventar periodicamente (coletiva e individualmente). Os dias passam depressa e viver bem, às vezes, ocupa-nos muito espírito. Deixamos de renovar o guarda-roupa, teimamos em velhos hábitos, acumulamos gordura… Tão pouca ação em nome da segurança que a estável relação parece conferir.
Em nome dos "tempos maravilhosos e dos anos encantadores", decidiram procurar aquele olhar e redescobri-lo. Podiam ter optado por se separarem e investir na conquista de novas companhias mas, recordando aqueles "dias de sol radiante", correram o risco de se mudarem juntos. Evoluíram, aprenderam a ver o mundo sempre de uma outra perspetiva, interessaram-se por novas realidades (mesmo por algumas que não constavam do cartão de visita inicial de cada um deles), mas decidiram os dois que não se queriam perder um ao outro. Que quem se empenha e se renova no trabalho, também deve empenhar-se e renovar-se em casa. Porque o primeiro olhar que se cruzou de forma especial, não tem que acontecer apenas naquele momento inicial.
Joel Cunha