Quem quer ser Gandhi? (Violência – 13)
A violência nasce de uma sensação de poder. Uma sensação, note-se, o que não equivale a um facto: podemos sentir-nos poderosos, mais fortes do que outra pessoa, e estar completamente enganados. Mas é assim a natureza. Pensamos: “Sou mais forte e mais esperto, logo posso vencer o fraco e o tolo”.
É a chamada lei da selva, a qual se torna imediatamente ilegítima a partir do momento em que a luta pela sobrevivência não entra na equação. Ninguém precisa de matar a mulher para que lhe sirva de alimento e assim salvar-se da fome, pois não? O exemplo é absurdo – e exagerado – para que a resposta seja óbvia.
Mas, e se a pergunta for: Tenho de tirar este homem daqui, pois está no meu território? Ou: Depois de me empurrares, que resposta mereces além de uma sova valente? Pior: E se o autor das perguntas estiver na faixa de Gaza? Pois, é fácil a coisa complicar-se...
Tal como deve ter sido complicado para Gandhi trocar o conforto de uma carreira de advogado, para a qual tinha estudado, e dedicar a vida combater a opressão – simplesmente porque um dia foi expulso de um comboio na África do Sul por ter a pele escura.
Por alguma razão foi ele – e não tantos outros que sofreram humilhações semelhantes em lugares dominados por preconceitos raciais e crenças antigas, muitas vezes infelizes e até anti-humanas – que ficou para a História. Sabe porquê? Porque optou por um tipo de luta nunca antes testado. Ou, pelo menos, nunca devidamente fundamentada e exemplarmente exercida, além de divulgada por escrito e oralmente, como ele o fez: a luta não-violenta.
Porém, a motivação para se optar pela não-violência – que deve começar no quotidiano, quando prefere voltar as costas a dar um soco no chefe, fazer greve a partir o escritório, procurar consensos antes de desatar ao pontapé, mas também barricar-se ou distribuir panfletos para marcar uma posição ou denunciar uma injustiça – não pode ser, em circunstância alguma, obter fama ou alcançar um estatuto heróico (querer ser um novo Gandhi), pois a vida não é um reality-show, nem a nossa conduta é um papel teatral.
Portanto, a primeira condição para ter sucesso ao optar pela não-violência é acreditar no que defende, ter um comportamento genuíno, que nasça do coração – tal como é do coração, ou de outra víscera qualquer mas decerto profundamente interior, que a violência costuma nascer. E não há maneira de combatê-la se o fizermos pela rama, à superfície, para outros verem e alcançar a glória.
Assim sendo, a mudança (da resposta violenta a qualquer tipo de opressão para outra, não-violenta) deve vir acompanhada de uma certa fé num mundo melhor, numa humanidade não-violenta.
E isso tem de começar em cada um de nós, sem esperar aplausos ou entrevistas na televisão, de preferência em forma de amor por todos os seres humanos – incluindo os violentos, pelos quais devemos sentir compaixão por não serem capazes de dominar a sua febre de poder em relação ao outro – que é sempre errada quando o alvo da sua ira é da mesma espécie, de carne e ossos e também com sentimentos. Mesmo se está no seu território. Ou lhe seduz a namorada. Ou faz troça de si. A resposta, para um coração à Gandhi – que em alastrando poderia dar origem à paz mundial – deve ser sempre não-violenta. E quem a escolhe deve sentir-se orgulhoso e fazer ouvidos moucos aos que o espicaçam, dizendo disparates como: “Bateu-te? Bate-lhe também!”
É verdade que “comer e calar” pode baixar a auto-estima... Mas só se a vítima aceitar que o agressor é, de facto, mais forte ou melhor – coisa que a nossa sociedade, na cegueira do sucesso e da competitividade, alimenta. É urgente mudar mentalidades e mostrar que forte e inteligente é aquele que consegue dominar os impulsos e nunca desce ao nível das bestas, cujo lugar é na selva, à mercê dos leões esfaimados, que não têm outro remédio senão matar para comer.
Berta Cem Mil (articulista convidada)