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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

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24
Nov17

A mansão (Mistérios – 4)

Publicado por Mil Razões...

Gargoyle - Dean Moriarty.jpg

Foto: Gargoyle - Dean Moriarty

 

Ao ver o velho portão não consegui conter um largo sorriso onde cabiam os medos ingénuos da infância. Para muitos ele era apenas o velho portão, guardião da casa em ruinas, mas para mim ele ganhou História com as histórias que dele se inventavam, ou não. Também ele cedeu ao tempo, estava perro e a ferrugem tingiu de ocre o chão. As ervas cobriram o passeio até à casa e estendiam hastes ameaçadoras por entre o gradeado. Mas, apesar de abandonado, ansiava atravessá-lo, queria chegar à casa e ver o que encerrava e que tanto assustava a pequenada do meu tempo. Empurrei-o. Rangeu furioso, protestante por ser arrancado à sua quietude, mas não se mexeu. Apliquei-me ainda mais, empurrei-o novamente, cedeu alguns centímetros, ainda assim não me permitiu entrada. No alto do gradeamento as carrancas de madeira intencionalmente ali colocadas pelo antigo dono, pareciam rir-se do esforço. Lá ao fundo, nas paredes da enigmática casa, as gárgulas demoníacas confiavam-se ao decrépito portão. Há muito que deixei de me assustar com tamanha fealdade, mas tempos houve em que só passava junto ao portão acompanhada dos meus colegas, tão assustados quanto eu. Se chovia e fazia vento, o ruído dos ramos das árvores adensava o mistério do lugar, mas se o tempo era de calmaria e a natureza se quedava, até o som das delicadas sementes das brizas e o balouçar do espanta-espíritos no alpendre nos chegava ameaçador. Dos adultos, ouvíamos as histórias fantásticas dos acontecimentos. Pessoas que desapareciam, tesouros guardados por um touro diabólico, barulhos indecifráveis, luzes que se acendiam e silhuetas que passeavam pela casa e pelo jardim. Assim, com todo este peso simbólico, quando a pequenada queria aferir da valentia de alguém, desafiava para passar o portão, atravessar o jardim e entrar na casa. Os mais aguerridos aceitavam as apostas, mas envergonhadamente derrotados desistiam mal a haste de uma erva lhes roçasse a cara. Lembro-me de um que, já quase a entrar em casa, fingiu uma entorse no pé quando subia o alpendre, desistiu, mas todos lhe admiraram a coragem, nunca ninguém tinha chagado tão próximo de entrar na casa.

 

Por essa altura chegou à escola um menino de uma aldeia vizinha. Desconhecedor dos fenómenos, aceitou entrar em casa e, com a inconsciência que a ignorância confere, sem rodeios abriu o portão, passou o jardim e entrou. Cá fora, com as caras encostadas às grades, as crianças esperavam. Era muita a ansiedade e a espera interminável, alguns adiantavam que era mais um a desaparecer nas ruínas misteriosas da mansão. Com a culpa a aflorar nos gestos e risinhos nervosos, já falavam em ir embora quando, com a mesma segurança com que entrara, viram o rapaz assomar à porta. No jardim cortou um ramo de flores bravias que entregou à Margarida por quem, diziam, se encantara, com a promessa de a levar com ele da próxima vez que ali voltasse. E ela, embevecida, prometeu-lhe que assim seria. Os outros procuravam sinais de pânico, faziam-lhe perguntas do que vira e ouvira e de como era lá dentro, mas o rapaz a nada respondia.

Um dia, no fim das aulas, viram-nos entrar na casa, ele à frente e ela atrás, hesitante mas obediente ao chamamento do amigo. Não avaliaram quanto tempo por lá andaram, mas quando saíram vinham de mãos dadas e sorriam. E se assim era com eles, então talvez não houvesse razão para tanto medo à volta da casa, pensavam os outros. Não sei se algum deles se atreveu alguma vez a passar o portão, mas aquele lugar deixou de ser misterioso e perdeu a curiosidade que até então suscitara. Passávamos sem a olharmos e caminhávamos de costas viradas sem receio de algum perigo que nos pudesse surpreender.

 

Ainda tento, mais uma vez, enterrar este fantasma do passado; gostava muito de visitar a casa, mas o portão teima em não se deixar arrastar. Dou meia-volta com intenção de me afastar. De repente, atrás de mim, o ranger de ferro-velho. Viro-me ainda a tempo de ver o velho portão fechar-se abruptamente. E, como antigamente, o riso das gárgulas e das carrancas a estugar-me o passo para longe daquele lugar misterioso.

 

Cidália Carvalho

 

Porto | Portugal

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