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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

30
Jul14

Delinquentes? Somos todos! (Delinquência – 13)

Publicado por Mil Razões...

 

Todos somos delinquentes! Porque talvez em algum momento da vida tenhamos cometido um delito. Não necessariamente roubar ou insultar alguém… não é desse tipo de delito a que aqui refiro. Falo de um delito bem pior… o da ofensa à nossa essência: Quando não esgotamos todos os cartuchos no Amor, só por medo do sofrimento; quando não nos dedicamos àquela profissão, só para não desagradar a alguém; quando sacrificamos o nosso tempo, que jamais vamos recuperar, em torno de algo ou alguém de que não gostamos; quando nos dedicamos a tarefas que nos retiram energia; quando deixamos para amanhã um ato, uma palavra, um gesto; quando achamos que já não temos idade para…; quando já não nos rimos à gargalhada, há meses; quando não prestamos atenção a nada nem a ninguém porque estamos muito ocupados; quando não sorrimos; quando estamos sempre a julgar o outro sem conhecer a sua história…

Que atire a primeira pedra quem nunca foi delinquente!

 

Sara Almeida

 

28
Jul14

A ferida que fere (Delinquência – 12)

Publicado por Mil Razões...

 

Sete passos para a esquerda. Doze passos para a direita. Cuidado com o precipício! Pior do que esfolar-me todo é a tareia que levo em casa, quando chegar. A mãe detesta que eu venha para aqui brincar. Detesta que eu chegue sujo e ensanguentado. Como se fosse ela que me lavasse a roupa ou me curasse as feridas… Diz que eu vou morrer de tétano ou cair num buraco e ficar lá preso, a morrer de fome ou algo ainda pior (o que será pior que isto?). Já me bateu tantas vezes quantas as que soube que eu aqui estive mas continuo a vir. É o único sítio do mundo onde ninguém me chateia.

Odeio a escola. Odeio aquela gente estúpida que diz que eu cheiro mal e que sou pobre. Odeio a professora que me chama burro em frente dos parvalhões da minha turma. Odeio que eles se riam de mim. Odeio ser “o filho da prostituta”, “o futuro delinquente”, “o marginal com dois olhos e um cérebro diminuto”. No Conselho da Escola sou mais conhecido que o tremoço. A última vez em que lá estive levei o sermão habitual e fui suspenso três dias. Nem me dei ao trabalho de negar aquilo de que me acusavam: roubei dois pães e uma laranja, do cesto pousado na cantina da escola, sim senhor. Não pedi desculpa, nem peço! Estava cheio de fome… Tinha ido a casa na hora do almoço porque a mãe estava num dia bom e queria um “almoço de família”. Queria pedir desculpa das cenas da semana anterior, já não aparecia em casa há três dias. Durante esse tempo valeu-me o almoço da escola mas, naquele dia, em que ela me esperou perto do portão e me pediu para ir a casa almoçar, não apareceu. Não comi e não tinha mais nada para comer até ao dia seguinte. Não pedi desculpa, não fui capaz. Também não disse que a mãe tinha saído no domingo com um cliente e que tinha regressado naquela terça de manhã, como faz habitualmente. Ninguém sabe nada da nossa vida. Ninguém sabe que, para além de sair com clientes, a mãe leva-os lá para casa. Alguns são maus, batem-lhe e gritam com ela. E até me batem a mim, quando a tento defender.

Ninguém sabe que a mãe enfia uma agulha no braço que a deixa com os olhos revirados e quase morta, durante muito tempo. E, quando isso acontece, às vezes tenho de vir dormir para a rua para aqueles tipos manhosos não me deitarem a mão.

Ninguém sabe que ela não tem mais ninguém que cuide dela. Ninguém sabe que eu gosto dela, apesar de às vezes quase desejar que ela não acordasse mais. Ela não é feliz. Diz que só foi feliz quando eu nasci e que agora, que já tenho 10 anos, percebe que também vou crescer e a vou deixar, como todos os homens da vida dela. Não a quero deixar. Não posso abandoná-la mas não consigo parar de crescer…

Ninguém sabe que raramente há comida em casa. Ou água. Ou luz. Quando há água, tomo banho e lavo a minha roupa na banheira. Lavo o chão (sempre com vomitado da mãe em todo o lado e às vezes preservativos e seringas) e os lençóis. Quando há luz, estudo e faço os trabalhos para a escola.

Ninguém sabe que a mãe às vezes dança comigo pela sala. Traz pizza e coca-cola e rimos de coisas parvas e sem sentido. Nesses dias a mãe diz que tudo vai ser diferente, que não me quer perder, que eu tenho que me portar bem senão a Comissão leva-me e põe-me num sítio mil vezes pior do que a nossa casa. Nesses dias a mãe chora e pede desculpa por não ter dinheiro, por não saber cuidar de mim e da casa, por ser fraca. Nesses dias abraça-me e eu fico feliz e cheio de esperança. Os abraços da mãe são secos e sufocantes mas são os únicos que tenho.

Quando me irritam, bato. Quando me insultam, grito. Quando me humilham, choro por dentro e rio por fora. E isto acontece-me muito. Finjo-me de forte, faço de conta que nada me incomoda. Digo coisas estúpidas. No outro dia, o Zé canetas chamou-me porco. Nem pensei, abri a boca e saiu-me, com as letras todas, “a puta da tua mãe”. Claro, na aula, com aqueles parvalhões todos a rirem-se de mim e a professora, de boca escancarada, a olhar para mim como se tivesse visto o demónio. Gostava de lhe explicar que nem sei porque disse aquilo mas não sei o que fazem as outras mães, que mais haveria de lhe chamar? Não disse mais nada. Mandaram-me àquele médico horrível, que eu juro que cheirava pior que eu, e o iluminado que mal me ouviu, receitou-me um xarope milagroso. Até achei piada aquilo de início, era docinho e ficaram todos tão contentes por eu o tomar. Um simples xarope e estava tudo resolvido. Mas depois deixei de saber onde estava. Pensava e agia em alturas diferentes, não conseguia falar sem enrolar a língua. Durante as aulas, queria pedir socorro, dizer que não queria estar assim, que aquilo é que era mesmo a pior de todas as coisas. Queria dizer que na minha cabeça só via a mãe, deitada no chão, com os olhos revirados, e eu a abaná-la, durante horas, sem que ela se mexesse. E depois já não era a mãe, era eu, ali deitado, com os olhos revirados e com espuma na boca. Não queria estar assim. Não queria. Não quero… E agora, agora tenho muito medo. Antes tinha mais fome que medo. Agora é tudo igual, só que custa muito mais ir para a escola. Não quero bater em ninguém. Não quero chamar nomes a ninguém. Não quero mais aquele maldito xarope.

Está frio hoje e custa a dormir aqui na entrada do prédio. A mãe trouxe companhia e eu não tive tempo de lhe dizer que tenho febre e que me dói a garganta, antes dela me por na rua, já a enrolar no braço aquela coisa estranha que ela usa para depois enfiar a agulha. Se conseguir dormir gostava de sonhar que estou numa casa bonita, deitado numa cama fofa e com lençóis a cheirar a lavado, a beber um leitinho quente e que a mãe me conta uma história até eu adormecer.

Os meninos maus têm direito a sonhar coisas bonitas?

 

Alexandra Vaz

 

26
Jul14

Endo quê? (Endometriose – 4)

Publicado por Mil Razões...

 

O meu mundo era normal até ao dia em que percebi que dentro de mim havia algo que não tinha cura. Cresci numa adolescência pacífica, apenas vítima de muitas borbulhas no rosto, mas pouco mais do que isso! A vida tinha crises, mas apenas existenciais. As dores vinham dos amores platónicos, das amigas menos compreensivas e das disciplinas menos fáceis. Passei grande parte do meu tempo a dançar e a amar! Sempre amei com intensidade e sempre me entreguei sem reservas. Um dia casei. Depois tivemos um filho. Divorciámo-nos e eu fiquei com o meu filho e com uma descoberta que mudou a minha vida para sempre. O meu filho nasceu de cesariana e nessa cicatriz que nos une, o meu corpo decidiu pregar-me uma partida! As dores começaram pouco depois de ele nascer, talvez um ano depois. Um pequeno nódulo, acompanhado de dores razoavelmente fortes durante a menstruação, levaram-me ao médico. Vim de lá contente e feliz com o meu antibiótico na mão e a solução à vista! Tão bom quando não é nada grave e passa se tomarmos aquilo até ao fim! Crente! Estupidamente crente… deixei-me ficar à espera que passasse! A verdade, é que deixei a minha dor física ficar equiparada à dor emocional da perda, e durante anos não consegui libertar-me de nenhuma delas. Aquele pequeno nódulo cresceu, notava-se no biquíni e dava-me dores infernais!

Há um dia na vida, que no meu caso penso que foi tardio, em que as dores nos ganham, e antes de sucumbirmos de vez, decidimos lançar a nossa sorte nas mãos dos médicos. Sentei-me e contei tudo. Falei da dor que me matava por dentro, que pareciam facadas na barriga, vezes e vezes sem conta e do medo das cirurgias. Segundo a médica, era uma hérnia, mas mesmo assim o melhor era ser vista! O meu terror por cirurgias fez-me ficar em sobressalto, mas naquele minuto em que se quer desistir, agarrei-me à certeza que daquela vez ia ser diferente. Então fui em frente, e passei grande parte do meu tempo dividida entre mim, a família e os diagnósticos médicos. A doença foi-se descobrindo. Durante uma ecografia foi-me alertado que poderia ser uma Endometriose. Não sabia o que era, mas voltei a acreditar na teoria de que com o antibiótico ficaria curada! Cheguei a casa e sentei-me em frente ao computador. De certeza que existia esta doença no Google!. Não só existia, como dava muitas dores e não tinha cura! Questionei: porquê a mim? Não que a desejasse a alguém, mas como qualquer ser humano, questionei que mal tinha feito para merecer tal castigo! Seguiram-se dias de dores, de conflitos emocionais e de exames de diagnóstico complementar. Foi assim que a Endometriose invadiu a minha vida! Senti-me revoltada, chorei bastante e percebi que em mim tudo tinha que mudar, acima de tudo a minha forma de encarar a vida e o meu corpo. A minha vida durante esses meses foi um inferno! Dores que me incapacitavam de andar, sorrir e ter vontade de me levantar da cama. Tu não andas, vives agarrada a analgésicos, deixas de aceitar convites para sair, o sexo passa a ser uma miragem e a tua vida vira-se de pernas para o ar! Acontecia dentro de mim algo que eu não entendia e que não me conseguiam explicar muito bem de onde vinha e porquê! Foi-me diagnosticada endometriose profunda, com dois focos: na cicatriz da cesariana e no septo reto vaginal. No dia 11 de Outubro de 2013 foi a minha vez de me submeter a uma laparoscopia. Estava nervosa, e depois todo o processo pré-cirúrgico é muito agressivo! Mas quando acordei das minhas 4 horas de bloco operatório, fiz as pazes comigo e com a doença. Tiraram-me um nódulo com 10 cm de diâmetro, que ainda hoje está fotografado no telemóvel da minha médica como “um dos maiores que vi!”.

Sabia que tinha que encontrar uma forma de viver com a endometriose, se não ia ser infeliz para sempre, e isso é algo que eu não desejo e não atraio para a minha vida.

Se antes eu tinha um alto na barriga, agora fiquei com um buraco! Mas a verdade é que fiz as pazes também com a minha barriga e olho para ela como uma guerreira que faz parte de mim e que também aos poucos vai vencendo batalhas... e quem sabe um dia a guerra! Vivo focada na cura, e tenho tentando transmitir esta forma de estar e viver a muitas mulheres que conversam comigo sobre a doença, a sua infertilidade e os seus receios. Partilhamos uma dura herança e com isso temos que nos unir e juntas encontrar soluções para viver cada dia com um sorriso.

A minha vida mudou! Voltei a praticar exercício e a minha alimentação se já era cuidada, agora é super-cuidada! Acredito nas terapias alternativas e tenho-me socorrido muito do Reiki e do pensamento positivo. Comecei a conhecer muito melhor o ritmo do meu corpo para minimizar sintomas e com isso, tudo tem fluido muito melhor! A endometriose mudou a minha vida, mas também me alertou para algo: temos que gostar de nós e respeitar o nosso corpo!

 

Sara Aisha

 

Artigo publicado no âmbito do Acordo de Cooperação entre o blogue Mil Razões… e a MulherEndo.

 

English version

 

25
Jul14

O circuito da delinquência (Delinquência - 11)

Publicado por Mil Razões...

 

Conduta ou postura incorreta que leva um agente, o infrator, a cometer um ato condenável diante da ordem social e assim sancionável, para desencorajar este autor, a reposição do equilíbrio social e repulsa à incitação da ocorrência de registos similares.

A natureza por si, da qual o ser humano faz parte, oferece espaço e condições para acomodar a satisfação das necessidades de todos os seres através do ecossistema natural. Ela está “equipada” para reagir face a distorções causadas ou não pela ação humana, restabelecendo-se o equilíbrio. A ocorrência de choques, em regra, prejudica os mais fracos e favorece os mais fortes ou resilientes. Esta distinção resulta de uma conduta preventiva (conservadorismo) dos primeiros e não reativa face a sua ocorrência, por parte dos últimos.

Assim, estão reunidas as condições para a ordem natural e vivência das espécies. Com a evolução da humanidade, das sociedades, tecnologia e da ciência, há necessidade de se comunicar e divulgar cada vez mais e melhor, no intuito de regular o ordenamento e funcionamento dos diversos agentes singulares e coletivos.

O Homem adulto, dotado de inteligência e detentor de informação crítica disponível deve dominar e disseminar as regras básicas e elementares de convivência e do funcionamento da sociedade. Descodificar a infraestrutura informacional existente e dela extrair o essencial é um instrumento vital para não se tornar ignorante e até estúpido face a alguma situação que pode ser considerada impraticável.

O desconhecimento ou ignorância deste código de ética pode conduzir a prática do delito. O delinquente sendo uma pessoa comum, tem direito a reintegração caso mostre sinais claros de arrependimento e correção, havendo lugar a novas oportunidades para engajar o indivíduo, ora culto, no processo social.

O delinquente pela sua conduta pode ser um oportunista como também alguém com predisposição para a sua prática. O oportunista pensa, erroneamente, que não será visto por ninguém e aquela seria a primeira e última vez a prevaricar. Porque o “crime perfeito” é uma configuração mental limitada pela própria ignorância humana, existem instituições de fiscalização da atividade humana com mandato singular de identificar desvio, fraude, dolo ou qualquer outra anomalia que possa comprometer a eficiência do funcionamento da sociedade.

Assim, enquanto a criatividade humana propiciar a invenção, o delinquente tem abertura para agir ao seu limite na tentativa de reinventar a roda, ao fiscalizador o seguimento de novas pistas até a sua revelação e à sociedade vítima e refém deste circuito, até prova em contrário a esta preposição.

 

António Sendi

 

23
Jul14

Travar a espiral (Delinquência – 10)

Publicado por Mil Razões...

 

A delinquência surge geralmente da necessidade de se encontrar na rua o que em casa falta: por vezes é pão, por vezes é afeto, por vezes é justiça, por vezes é opção própria, por vezes é tudo isto junto. Para se fazer um delinquente são necessários ingredientes simples e um modo fácil de os misturar: ambiente familiar errante, situação económica magra, gorda dose de incongruências na educação e maus exemplos por parte dos modelos parentais. As causas da delinquência são plurais e não se esgotam nestas. Compreendê-las é importante mas não atenua nem soluciona o problema.

O verdadeiro combate à delinquência, partindo do princípio de que aqui estamos todos de acordo quanto à sua definição mais geral, não é fácil nem simples. Trata-se de um exercício que pretende interromper a espiral viciada de que se alimenta o delinquente, espiral essa que, com o tempo, passa a fazer parte e a definir a sua própria identidade. É óbvio que uma boa prevenção seria a melhor solução, mas numa sociedade real a prevenção acontece, não raras vezes, tarde.

Uma intervenção remediativa deve, na minha perspetiva, iniciar-se aos primeiros sinais de que algo não vai bem. Enquanto se aguarda por dados mais concretos vai-se dando oportunidade à consolidação do problema. A distinção entre um arrufo isolado e um ato inserido num contexto de desobediência mais vasto não é assim tão difícil. As educadoras sabem-no bem.

Na adolescência, a partir dos 12, 13 anos, a intervenção deve ser musculada, verdadeiramente multidisciplinar e multicontextual. Musculada porque o assunto é sério e exige firmeza, multidisciplinar porque deve envolver diversos agentes (educativos e clínicos) e multicontextual porque a reabilitação de um delinquente juvenil não ocorre (ou ocorre muito dificilmente) se ele puder vestir uma pele diferente nos diferentes contextos em que circula.

Cada caso é um caso e a fórmula que serve a uns não tem necessariamente que servir a outros. No entanto há procedimentos que têm vindo a ser negligenciados, nomeadamente na escola (provavelmente por colidirem com outros preceitos tidos como mais importantes), que poderiam devolver às salas de aula a tranquilidade de outrora e que permitiriam ao professor utilizar mais o seu tempo a lecionar e menos a "apagar fogos". Um desses procedimentos, talvez um dos mais importantes, é a revisão da prática disciplinar. Enquanto as questões de disciplina minarem o ambiente escolar, pouca disponibilidade sobra para que os professores ultrapassem o seu papel e ensinem também para além da lição. Fora do contexto escolar, uma boa parte da delinquência surge da falta de projetos desenhados para envolver e ocupar os adolescentes. Um investimento sério, a nível nacional, em atividades interessantes e criativas, que direcionassem a energia dos adolescentes para causas úteis e nobres (como por exemplo o voluntariado), não só preveniria o surgimento de comportamentos desviantes como combateria boa parte da delinquência instalada.

Este é um problema complexo, multifacetado e sem solução à vista. Tem raízes na organização urbana, social e económica, é certo, mas a maior parte do seu peso advém da qualidade da formação, do civismo e do respeito. A subtração da liberdade, se por um lado tem servido a dupla função de castigar/reabilitar o delinquente adulto e de proteger as eventuais vítimas, tem, por outro, afirmado o redondo fracasso de todos os mecanismos de prevenção e de contenção dos comportamentos marginais que lhe estão a montante. Um povo mede-se muito mais pelos valores que defende do que pelas medidas de combate que se obriga a criar.

 

Joel Cunha

 

21
Jul14

No fio da navalha (Delinquência - 9)

Publicado por Mil Razões...

 

Qual é a fronteira a partir da qual eu estou a delinquir? A cometer um delito?

A pergunta não me parece ter uma resposta difícil, ao contrário ocorrem-me de imediato várias situações em que estou fora da lei: se estou a conduzir um automóvel e piso o risco contínuo ou ultrapasso prolongadamente o limite de velocidade; se vou a uma feira e levo algo sem pagar. Estas respostas, não tenho grandes dúvidas, são de aceitação generalizada e evidente. Acho que posso apostar que “toda” a gente acha que estes são delitos que muitos de nós cometemos.

E quando abro o vidro daquele mesmo automóvel e atiro com um papel para a via pública? Ou quando venho cá fora à porta do edifício onde trabalho, ou do restaurante, para fumar e atiro com o resto do cigarro direitinho para o chão? Quantos acham que eu sou um delinquente? Ou, tão só, um pequeno infrator?

Bem, seja mais ou menos evidente ou de aceitação generalizada, que se está perante um ato de delinquência, a pergunta seguinte é: está bem, todos praticamos um ou outro delito e até com alguma frequência, mas a partir de quando é que passamos a carregar com o estatuto de delinquente?

  [parto do conceito de que delinquência é uma prática individual, personalizada, mesmo que a causa seja social]

Acredito numa sociedade de e com valores, direitos e deveres, organizada democraticamente, baseada no exercício da cidadania.

Dito isto, ainda tenho mais uma pergunta: a delinquência, a prática de delitos de maior ou menor dimensão, é sempre e em qualquer circunstância negativa?

Por vezes, ainda que não possa servir de escudo para tudo, delinquir não poderá ser um fator de evolução de progresso?

  [pois, as fronteiras, o como, o quem, o porquê e para quê...]

 

Jorge Saraiva

 

19
Jul14

Aprender a viver (Endometriose - 3)

Publicado por Mil Razões...

 

Aos 28 anos tinha a cabeça cheia de sonhos. A viver uma relação profundamente feliz, com uma vida perfeitamente estável, pensar no passo seguinte foi algo que surgiu de forma natural, como consolidação de uma família de dois a querer crescer. Com a tranquilidade que nos caracteriza em todos os momentos, entrámos nesta fase da nossa vida, achávamos nós, preparados para tudo. Dois anos, muitos testes de gravidez, alguns atrasos menstruais (que apenas chegaram para nos criar uma nuvem de esperança que fácil e dolorosamente se desvanecia) e uma cirurgia simples para tirar uns pólipos do endométrio, depois inscrevemo-nos no serviço de fertilidade de um hospital público. E na primeira consulta ouço pela primeira vez a palavra endometriose. Apenas nove meses depois da suposta cirurgia simples e da boca de uma médica que, não obstante o diagnóstico correto, o desvalorizou e me enviou para um outro hospital, afirmando que teria que ser operada, mas que a operação era complicada e arriscada porque poderia comprometer o meu intestino. Nem menos, nem mais. No outro hospital, nem uma ecografia, nem um exame, nem uma medida foi tomada, nem mesmo quando fui parar às urgências com a sensação de que todos os meus órgãos pélvicos se contorciam dentro de mim. Confirmaram a endometriose como quem me diz que tenho que aprender a viver com a mesma, porque não iriam fazer nada, como se não houvesse nada a fazer. E eu piorava a cada dia. As dores e hemorragias que, desde sempre me tiravam a força, a energia, a capacidade de viver um dia a dia normal e que me roubavam o sorriso, estavam cada vez mais insuportavelmente fortes. Primeiro eram normais, tinha que as suportar, faziam parte de ser mulher. Depois passaram a ser consequência dos pólipos e com a cirurgia tudo ficaria bem. Afinal era bem mais do que isso, mas ninguém quis parar para explicar. 

Aprendi quase tudo o que hoje sei sobre endometriose nos fóruns da Internet, nos grupos de mulheres que sofrem do mesmo e nos longos e complexos textos científicos que li. E só aí percebi que tudo o que sempre aceitei como sendo normal: as dores incapacitantes que me obrigavam a largas noites acordada, tão cheia de analgésicos como de lágrimas teimosas, os fluxos anormais que me impediam de sair de casa, de me levantar, de reagir, a dismenorreia, a dispareunia, o cansaço físico, contrário à minha cabeça sempre a mil… era tudo, menos normal. A sociedade formata-nos de tal forma que não nos apercebemos do perigo iminente em que vivemos. Deixamo-nos ir, tomamos comprimidos e rezamos copiosamente para que passe o mais rapidamente possível. E deixamos que os tentáculos da doença cresçam impiedosamente e nos roubem a esperança, a alegria, o sorriso e tanto, tanto mais.

Andei dois anos sem que nada fosse feito, até ter ido parar às mãos experientes de um médico que conhece a doença e os seus perigos. “Tem um tumor grave, tem que ser operada o quanto antes”, disse-me, num afago de voz e de mão doce que me apertou o queixo. “Esta menina sofre de dores que ninguém imagina”, disse para o meu marido. E logo ali uma lágrima teimosa rolou. Não pelo diagnóstico, não por finalmente ter encontrado um médico que sabia o que fazer, mas por alguém, finalmente, valorizar o que eu estava a sentir e a viver e afirmar que não era “frescura minha”. Não era normal ter dores insuportáveis ou hemorragias descontroladas. Felizmente os dois anos de corredores de hospital sem que nada fosse feito não comprometeram nenhum dos meus órgãos e, consequentemente, a minha qualidade de vida. Depois, uma cirurgia complicada, uma recuperação longa, dolorosa e difícil: seis meses de cuidados, de alertas e de proibições médicas, seguidas à risca por quem queria lutar com todas as forças.

Desde então e chegada aos 35, já lá vão duas cirurgias por conta desta doença que aparece sem se fazer notar, que lenta mas insistentemente vai tomando conta de nós e que se agarra como cola onde pode. Já lá vão, também, três tratamentos de fertilidade sem sucesso. A cada um deles, o ovário esquerdo teimosamente colado ao útero é de acesso quase impossível. Culpa da endometriose. Já lá vão muitas e muitas caixas de analgésicos e de pílulas. Muitas lágrimas, muitas noites mal dormidas. Mas conheço a doença. Identifico-a à légua. Sei o que fazer e como fazer e sou muito bem seguida por uma médica fantástica, ao nível da endometriose. E mesmo quando a cada tratamento de fertilidade me dizem que o meu corpo deveria reagir melhor, que deveria produzir mais, que fui “miserável” (sim, já o ouvi da boca de uma médica que me acompanha na fertilidade) eu reforço que, considerando a doença, acho que o meu corpo se tem portado maravilhosamente bem. Estou inteira, cheia de fé e de sonhos ainda, como quando aos 28 tomei a decisão de alargar a família.

Hoje posso dizer que não aprendi a sobreviver com a endometriose. Isso jamais seria suficiente para mim. Não me subjugo a algo sem tentar libertar-me das suas amarras. Vivo alerta, mas aprendi a viver. Venço cada etapa desta doença que poderá impedir-me de ser mãe biológica, que poderá levar-me novamente a um quarto de hospital já tão conhecido, que me fará sentir os mesmos receios de sempre, mas que não me roubará o sorriso, nem a vontade de continuar a ser feliz.

 

Bárbara Alves Vieira

 

Artigo publicado no âmbito do Acordo de Cooperação entre o blogue Mil Razões… e a MulherEndo.

 

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18
Jul14

Sou como sou (Delinquência – 8)

Publicado por Mil Razões...

 

Estou sempre a ouvir a mesma pergunta: “- Porque que és como és?”.

- O que tenho de fazer para me explicar?!

E eu pergunto: “- Terei mesmo de me explicar?”.

Deixei de confiar, já há muito tempo, nas pessoas, prefiro andar à volta no meu bairro, fazer o que me dá na gana e não me preocupar com o resultado.

No tempo em que os animais falavam, eu confiei em alguém, alguém que se apresentou como meu amigo:

- Henrique. Sou teu amigo e nada quero de ti. - respondeu ele à minha pergunta: “Quem és tu? O que queres de mim?”.

Durante um tempo acreditei mesmo que a sua amizade, a forma como me tratava seria o que eu precisava para confiar em mim e mudar de rumo na vida, ser talvez o que a minha avó sempre quis que eu fosse, um rapaz ajuizado com um lugar na sociedade.

Mas lá chegou o dia em que o conheci e a minha ilusão foi destruída, não podia tratar-se de um amigo. Ouvi as minhas confidências serem usadas contra mim em forma de crítica, a forma como falava comigo e sobre mim faziam-me sentir reles, compreendi o seu egoísmo e como apenas servi os seus interesses. “ - Mas eu fui teu amigo.”. - disse-me certo dia quando confrontado com a minha magoa. Fiquei calado, mas quis dizer que preferia que nunca o tivesses sido, pois descobrir que tudo era mentira, uma farsa foi bem pior e acabou por destruir a minha última esperança na bondade da raça humana.

Por isso prefiro ser o que sou. Aqui no bairro têm medo de mim, dizem que sou violento, que roubo, que tenho um bando. Assim não espero nada, não tenho nada e provavelmente não sou nada.

 

Susana Cabral

 

16
Jul14

Quem se importa? (Delinquência – 7)

Publicado por Mil Razões...

 

Girou a cabeça num ímpeto de quem se desprende de um afeto que despreza. Cintilou a mecha de cabelo loiro, que esvoaçava, confundindo a luz do sol.

- Que me importa? – questionou ela.

- Não te importa? – perguntou face à sua indiferença.

- Ninguém se importa – retorquiu secamente.

Guardava a secura das suas palavras. Não esperava nada de ninguém.

Tinha vivido mais ou menos assim toda a vida que lembrava. Foragida das emoções. Pelo menos daquelas que faziam chorar. Já aquelas que criavam adrenalina, essas, ela buscava intensamente, como quem corre para a fonte quando a sede importuna. E nessas emoções, sentia-se pertencida. Parte. Real. Viva.

Não conhecera o pai, nem de retrato. Só a mãe, que pouco via. Trabalhava até tarde. Não tinha tempo para ela. Só para pôr pão na mesa. Menina crescida, sempre fora um pouco livre. Mas, sua face de anjo, andava muito longe de menina bem comportada.

Desviava-se nas presenças de quem lhe fazia companhia, não das melhores, claro está! Mas, companhia. Não era tão só, assim. Deambulava e alinhava nos esquemas dos mais velhos.

A primeira vez que roubara, sentira um aperto no peito. Sabia que não era certo. Mas fez. E teve direito a festa e tudo. Sentiu-se parte. Aquilo devia ser o mais perto de família. Mentiu para a mãe. E convenceu-se disso. Que não fazia mal. Não era nada de especial.

Quando estava em grupo, tudo era maior. Ela era maior. A maior! Sentia aquela rajada de adrenalina e acreditava que estava viva. Chegava a casa e sentia-se menina de novo. Desamparada. Chorava no silêncio. A mãe dormia, de tão cansada. Havia um abismo entre ambas. Coisas que a vida arrasta. A mãe não tivera vida fácil também, enquanto menina. Todavia, esforçava-se muito para que a filha tivesse futuro melhor. Mas, nesse processo, não havia muito espaço para partilha. A vida era demasiado dura. E era nessa ausência, que a menina sua, se desviava na presença de outros. Com outros. Desconhecidos, tão familiares à menina. Nessa ausência, a menina se convencia que não importava, a não ser aos olhos do seu grupo. Dos seus amigos.

Continuava a faltar, constantemente, às aulas. A mãe, sem tempo para reuniões, já a ameaçara de colégio interno em resposta à sua ingratidão. Retorquia que não gostava da escola. Fugiria para bem longe.

Havia apenas uma aula de que gostava. Não era bem a aula. Era a professora. Era diferente. Não sabia explicar. Talvez fosse a única que nunca a expulsara da sala.

De vez em quando, no recinto da escola, sentia-se observada.

Nesse dia, a professora preferida aproximou-se. Falou com ela um pouco sobre nada. E depois, questionou sua conduta escolar. A razão das faltas. As companhias. Não como se criticasse, mas como se quisesse mesmo saber. Saber dela. Não das coisas que fazia. Estremeceu por dentro. Sentia-se estranha. Quando a professora perguntou sobre tudo isso, ela respondeu: que me importa? A professora limitou-se a devolver a pergunta. Ela, aí, desabafou: ninguém se importa. Mas, em vez do silêncio habitual, ela ouviu, pela primeira vez, numa voz doce: eu importo-me.

 

Cecília Pinto

 

14
Jul14

Marginalidades (Delinquência – 6)

Publicado por Mil Razões...

 

Rodrigo Maria (nome fictício para Rodrigo, para Maria, para João, Ana, José, Luís e tantos outros) não se conformava. Mais do que a revolta que o acompanhava desde sempre, sentia uma total incompreensão pelo que estava a acontecer.

“O menor veio acusado de crimes dirigidos à propriedade e às pessoas, revela transtornos internos antissociais que motivam a ação delituosa e a sua reincidência. Sofre de perturbações que o impedem de se adaptar às normas. Perante os factos comprovados neste Tribunal de Família e Menores, o Rodrigo Maria não revelou sentimentos de culpa ou arrependimento, desconforto interno ou dúvidas. Constitui uma ameaça para a sociedade, pelo que determino o seu internamento por 2 anos em regime fechado.”

Com esforço, recordou parte dos “crimes” que o tinham conduzido até àquela sala fria do Instituto. Os vidros estilhaçados da sala de aula, as latas de spray despejadas na viatura da professora, a ninhada de Terrier afogados no lago, passando pela bola - uma simples bola!- roubada na loja do bairro, até se deter no susto que pregara à vizinha de cima e que esta aproveitara para morrer, atirando-se pelas escadas abaixo. “A velha nem gostava dos cães! Crimes? Mas que merda de crimes são estes? Quem são estes cabrões para me julgar?”. Cravou as unhas nas faces e arranhou até a pele ceder. Com os dedos ensanguentados desenhou um enorme “O” na parede branca. Uma raiva imensa apoderou-se daquele corpo franzino e tatuado por feridas mal cicatrizadas, provocadas por incontáveis automutilações. “Cabrões, grandessíssimos cabrões”, gritou ofegante enquanto percorria as paredes da sala com o olhar. Deteve-se num pequeno quadro desnivelado, suspenso por um fio. Enquadrada por moldura pindérica, uma frase bordada a ponto de cruz exultava: “O FUTURO ESTÁ NAS TUAS MÃOS”. Dirigiu-se para um canto da sala, baixou os calções, agachou-se, abriu a pernas, fincou os cotovelos nas paredes e defecou no mármore branco. Mergulhou as mãos de sangue nas fezes, completou a palavra ódio na parede e chorou. “Os cabrões nem sequer me perguntaram se eu cheguei a conhecer a minha mãe!”.

Uma mão firme de mulher agarrou-o pelo braço, levantou-o sem custo e foi sem custo que o arrastou até à porta da sala. À sua frente, um imenso corredor estreito, muito alto e simetricamente ladeado por portas, terminava num enorme Cristo cruxificado. “Vais imediatamente tomar banho e mudar de roupa. Quando terminares, falaremos sobre o castigo que vais sofrer”. A mão papuda e possante continuava cravada no braço franzino e Rodrigo Maria experimentou pela primeira vez na vida uma sensação de conforto. Desejou que aquele momento de felicidade não terminasse jamais.

Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.

 

José Quelhas Lima

 

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