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Mil Razões...

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

O quotidiano e a nossa saúde emocional e mental.

28
Out19

Mas… há sempre um mas (Fé – 6)

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Foto: Landscape - Enrique

 

Creio no Homem e na imutabilidade da sua natureza. Os tempos são exigentes, trazem doutrinas, religiões e novas filosofias de vida. Ele explora-as, explica-as, justifica-as, acredita-as, adere. Mas as novas correntes não lhe alteram a essência e nem assim, essa imutabilidade, lhe facilita o conhecimento de si mesmo.

Creio no Homem enquanto ser curioso, necessitado de entender o que o rodeia. Mas o que vejo são seres desligados, errantes sem metafísicas ou angústias que lhe tirem o sono.

Creio no Homem enquanto ser irrequieto em busca da felicidade. Mas vejo-o conformado, teorizando que a felicidade está além de qualquer coisa física, atingível apenas dentro da consciência.

Creio na bondade. Mas duvido das boas ações. Interrogo-me sobre as razões de tão nobres qualidades, mas os porquês ficam sem resposta.

Creio na necessidade de compartilhar. Mas as ações são egoístas.

Creio na necessidade de amar e ser amado. Mas a indiferença e o ódio levam a palma.

Creio nos afetos, na esperança que chega num abraço e nas certezas vindas num beijo. Mas foi um beijo que traiu Jesus Cristo e o levou à morte.

Creio nas energias positivas que fazem girar a roda e nos empurram nesta caminhada a que chamamos vida. Mas vejo desistências.

Creio na paz e na tranquilidade que a natureza, sempre conciliadora, oferece nas cores, nos sons e nos perfumes inebriantes. Mas conheço-lhe a força e o poder destruidor, rios que transbordam, mares que galgam, ventos que rasgam, terras que se abrem.

Creio na ordem natural das coisas, nascemos, maturamos, envelhecemos e morremos. Primeiro, filhos, depois avós, após termos sido pais. Morremos pela ordem inversa da vida, primeiro os avós, os filhos depois dos pais. Mas às vezes alguém se lembra de baralhar e trocar a ordem.

Creio no amor infinito de Deus e no amor absoluto a Ele. Mas sou tomada de noites escuras da alma na experiência dolorosa da busca do crescimento espiritual.

Creio em tudo porque tudo me parece real. Mas não me rendo a nada.

E, com todos os Mas a rematarem os meus credos, o mais certo é que não haja sintonia entre mim e aquilo em que acredito. Não sei desligar-me do coração e da mente onde arrumo e revisito as minhas crenças e entregar-me confiante à execução dos meus credos sem esperar nada em troca. Falta-me transcendência e profundidade. Falta-me fé.

 

Cidália Carvalho

 

21
Out19

Manual dos amantes frios (Fé – 5)

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Foto: Model - Engin Akyurt

 

“Não posso escolher como me sinto

Mas posso escolher o que fazer a respeito.”

“Ninguém poderá jamais aperfeiçoar-se,

Se não tiver o mundo como mestre.

A experiência adquire-se com a prática.”

W. Shakespeare

 

 

Tinha uma vida modelo. Seguira o plano, trabalhou e casou, teve filhos. A família diria ter arranjado o marido perfeito. A vida corria bem. Até deixar de correr.

Separou-se, viu-se a priorizar quem aliviava a rotina diária, a lida da casa e a educação dos filhos. Apareceu companhia a quem era fácil pedir ajuda, estava ali. Era também com essa pessoa que se divertia, veio a descobrir, achando-se amiúde a sorrir como há muito não se ouvia. Mas não sabia que significado dar aos sentimentos que começara a nutrir por aquela pessoa, que se tornara um ponto de luz.

Fala-se da fé quando por acaso se anda muito longe dela. Não vemos nada ou mesmo que víssemos, a bússola deixou de funcionar.

Outrora, caminhava-se por ruas, casas, pessoas e valores que iluminavam o percurso como amoras frescas por entre as silvas.

“Tens de ter fé” ouve-se. Por vezes, surgem o “Tens de dar tempo” com o “Tens de ter calma” quando parece que já perdemos algo para sempre, que nunca chegamos a lado algum ou que algo nunca mais cessa, com a íntima sensação de que algo já deveria ter mudado.

 

Para dias de pouco ardor, como preservar o fogo e mantê-lo quente?

Lemos que a vida é uma viagem, para ter esperança no futuro, nos outros, em nós.  Podemos também procurar o momento em que nos vimos pela última vez. Encontrar os nomes, os gestos e os cenários que, então, nos acompanhavam. Visitá-los. Voltar humildemente a essa antecâmara pré-tempestade. Ir com medo e a tremer, ir sem esperança, mas ir. Reconhecer-se nessa memória. Depois até chorar, se nada acontecer de diferente. Foco na respiração. Hoje, inspiro e expiro e isso basta-me.

Tentar voltar, ver dos passos tomados, mãos e sorrisos que nos seguravam.

Aparecer aí, aguardando o que por lá se sentiu ou pressentiu. Deixar-se estar ainda mais um bocadinho e respirar.

Um dia, entra-se em casa e algo acende dentro de nós. Ficamos quentes e surpreendidos. Não sabemos bem o que é esta sensação, mas sabemos que queremos que continue. Afinal, contávamos com mais alguém que não sabíamos lá estar: connosco próprios e a nossa capacidade de cuidar de nós.

E aguardar que esse alguém nos encontre, fechando a porta atrás de si.

 

Maria João Enes

 

18
Out19

Vida com sentido (Fé – 4)

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Foto: Dynamic - Fabienne Francis

 

Ter fé é crer firmemente naquilo em que acreditamos, em que confiamos. A fé dá-nos a coragem e a energia de que precisamos para a vida ter sentido. Sem ela, a vida seria vazia e desprovida de sentido, pois ninguém pode viver sem uma base de confiança, de esperança e de amor.

As experiências de cada um de nós, que são pessoais e intransferíveis, dão origem a uma energia ou sentimento, como se queira definir a fé. A vida só é vida com fé, porque é esta que dá energia à vida, que eleva o nosso espírito, que nos dá coragem e renova a nossa esperança para se alcançar o que desejamos.

A fé é o alimento da vida, é ela que apoia as nossas esperanças e que nos ampara, enquanto lutamos contra as desconcertantes e inevitáveis questões do dia-a-dia. Todos nós, temos no nosso íntimo, em estado latente, o poder da fé, ou seja, o poder de tornar real muito daquilo que desejamos alcançar. Pois bem, é através do exercício contínuo de uma vontade determinada, pertinaz e orientada nos objetivos em vista, que será possível mudar a nossa visão daquilo de que é para aquilo que pode vir a ser.

Por isso, cultivar a fé, além de nos ajudar a ter uma atitude positiva quando estamos em circunstâncias difíceis ou complicadas, contribui seguramente para refletir sobre a nossa própria existência e proporciona-nos uma vivência interior mais tranquila.

 

José Azevedo

 

14
Out19

Delicadeza (Fé – 3)

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Foto: Sunset - Nandhu Kumar

 

Tenho fé na delicadeza. Tenho fé na meiguice. Acredito que ambas podem mover o mundo e viabilizar mudanças que de outra forma não seria possível.

Ser meigo e delicado é sinónimo de ser permissivo? Não, pelo contrário. É ser capaz de gerar e expressar pensamento crítico sem ferir ninguém.

É sinónimo de falta de masculinidade? De todo... Um homem meigo tem tudo para ter sucesso. É visto como homem e não como o tão conhecido “macho man”.

É sinónimo de ser demasiado feminina? Também não. Não precisamos de ser as guerreiras do universo para sermos fortes.

 

Olho à minha volta e apenas vejo pessoas rudes, desconfiadas, com a língua pronta a disparar palavras que causem efeito rápido e pressão nos outros.

Mas tenho fé... Tenho fé nas pessoas que, de vez em quando, se cruzam comigo e me tocam com a sua meiguice. Deixam a sua marca positiva e me fazem acreditar que é possível.

 

Sónia Abrantes

 

07
Out19

Ubiquidade (Fé – 2)

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Foto: Nature - Josep Monter Martinez

 

Uma casa. Memórias penduradas em caixilhos de madeira, suspensas no tempo. Nesse que já não volta. Que partiu. Outros alicerces se erguem dos ramos da árvore ceifada e estendem-se até à eternidade.

Clamam ao vento que entra pelas janelas por um pouco de esperança. O seu eco ressoa pelos campos e cidades, fazendo o mundo tremer. O chão rasga. A alma afunda. É na dor que a oração tem maior impacto.

A pequenez da humanidade, sucumbida à sua inaptidão, reclama por algo maior. Por algo que potencie o amor. Daquele que faz o peito voltar a bater quando se rompe o esquecimento.

E a sala escurecida adquire outros tons, devolvendo o ânimo ao ser.

A prova. A razão.

É na crença que mora a força que habita em nós, instigando os momentos que se vão sucedendo em atropelo. Recaia no que recair. É a fé que nos faz prosseguir.

 

Sara Silva

 

04
Out19

Alguma “coisa” (Fé – 1)

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Foto: Pray - Congerdesign

 

A fé, como orientação teológica cristã, é uma forma de a analisarmos. Outra forma diferente é considerar a fé como uma força ou um recurso de resistência. Não sei o que me empurra em determinadas situações difíceis da vida: situações em que me foge o chão; situações em que me sinto impotente; situações que me afligem e me apertam e; situações em que não vejo uma luz que me conduza.

A morte a doença de familiares e de amigos são as situações mais dolorosas para mim e, para todas as pessoas, julgo eu. Quem não passou já por isto? Perante a morte e a doença tem de existir algo, que não é só o tempo, que me ajuda(ou) a seguir em frente. Digo, tempo, porque se diz, muitas vezes, que o tempo cura tudo, mas no decorrer desse tempo há, com certeza, algo que me ajuda a continuar. Porque é que uns conseguem continuar em menos tempo e outros vivem em profundo sofrimento durante mais tempo? Será que uns se fazem apoderar da fé cristã e outros possuem intrinsecamente uma força, como recurso de resistência?

Diz-se, com muita frequência, que vale a pena acreditar em alguma “coisa” para além do nosso corpo e da nossa mente, para conseguirmos ultrapassar estes momentos. Não tenho evidência que sustente esta afirmação. Os meus pais deram-me uma educação católica e já vivi, de muito perto, a morte e a doença de familiares e amigos, mas não tenho a certeza se foi essa orientação que me ajuda(ou) nesses momentos.

 

Confesso que julgo ser uma pessoa com força e resistência quando analiso a história de vida que me fez, mas também não sei se foram esses recursos que me ajudam. Confesso que fico com receio de não ser fiel à minha religião, porque não sei ainda, com esta idade, se atingi a consciencialização desta fé. Sei que vou conseguindo ultrapassar estes momentos difíceis. Se é com a força que julgo ter, ou se é pela fé, como orientação cristã, não sei! Nestes momentos que refiro, às vezes entro na igreja, onde fico por alguns momentos, e sinto alguma paz. Dei agora por mim a falar de força e fé cristã só nos momentos difíceis, mas será que todos os dias esta força e a fé cristã norteiam a minha vida? Tenho muitas incertezas relativamente a este assunto, mas parece-me importante que cada um, para bem da saúde mental e emocional, se encontre com alguma “coisa” e lhe dê as mãos. Não vivam momentos difíceis sozinhos! E durante a vida, mesmo que não sejam momentos difíceis, deem também as mãos a alguém ou alguma “coisa”. Pode ser que ajude. Comigo tem resultado, embora, às vezes, com muita dificuldade, mas, como digo, não tenho a certeza a quem dou as mãos. Provavelmente dou as mãos a muitas “coisas” na vida (recursos internos, religião - mesmo com consciencialização frágil - e a pessoas que me amam e quem amo). Desculpem… não sei se fui clara. Respeito muito este assunto, mas confunde-me.

 

Ermelinda Macedo

 

30
Set19

Desconstruir e nascer de novo (Humildade – 10)

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People - Pexels.jpg

Foto: People - Pexels

 

Tento entender as leis da raça humana, mas não fazem sentido. Oiço o que as pessoas dizem e baralho-me com o que fazem. Na minha cabeça, não bate uma coisa com a outra e há dias em que isto me desorganiza. Muita retórica, muita palavra eloquente e, no final, nenhuma consistência. Não consigo orientar-me nesta desordem. Sei que não tenho de entender tudo mas gostava de (con)viver de forma mais pacífica com este facto. Parte de mim sabe que metade desta ansiedade vem daqui, unicamente daqui. Na dicotomia da existência, sou uma micropartícula que se afunda nas incongruências (afinal, vulgares) do ser humano. Lutamos por coisas tão pequenas e insignificantes. Fechamos os olhos a genocídios e fraudes. Esquecemos de onde vimos e hipotecamos quem somos. Sem nexo. Sem propósito. Sem humildade. Não é humilde o que tem pouco, mas aquele que, tendo muito, se alicerça nas pequenas coisas, valoriza a singularidade de cada momento e jamais esquece o poder de um sorriso franco. Mas ser humilde não significa aceitar tudo, morder cada sentimento como se nada doesse ou esquecer os caminhos da angústia. Significa ver algo de belo ao longo do percurso, ainda que este seja sinuoso. Significa não permanecer onde nos ferimos. Significa ser grato, valorizar a vida, a magia do primeiro sopro de todas as manhãs, cada batida do coração que nos permite existir. Significa Ser e Sentir, em plenitude: desconstruir e nascer de novo. Tantas vezes quantas forem necessárias. Significa lembrar.

Hoje, apesar de me faltarem ainda tantas respostas, sinto a cadência do mundo na minha vibração. É um sentimento bom, reconfortante, que me devolve serenidade à alma, num momento de tanta inquietude. Fecho os olhos, respiro lenta e profundamente e faço de conta que tudo está no seu lugar. Talvez, quando os abrir, tudo esteja. Incluindo eu.

 

Alexandra Vaz

 

16
Set19

Diria Arquimedes (Humildade – 9)

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Foto: Artwork - PublicDomainPictures

 

Não somos sós, felizmente, perante o mundo – a Terra e mais além – e perante os nossos pares, a sociedade que nos enquadra, cultiva, molda e que... seria ligeirissimamente diferente se nós não existíssemos. Seria quase tudo igual, menos eu, um de nós.

Pequeníssimos perante tanta e variegada gente, e tamanho mundo, e natureza, e tudo. Capazes, no entanto, a partir dessa infinitésima pequenez de fazer a diferença, mais ou menos naturalmente. Com vontade, expetativas, trabalho, contributo.

Não é contraditório, diria, é concomitante.

Não será um objetivo, acontece.

Isso de provocarmos a diferença, fazer importar a nossa existência. Talvez até aconteça tanto mais quanto melhor nos conhecermos – as nossas fraquezas, defeitos, debilidades - e ao que nos rodeia. Quanto mais tivermos os pés bem assentes na terra, quanto mais formos humildes, respeitadores, não nos sentirmos mais do que nada ou ninguém. Nem menos, é claro.

Se tivermos humildade, teremos uma sólida, forte, base de apoio, para podermos ser ambiciosos, querermos crescer, progredir, desenvolvermo-nos, contribuir.

Sem pisar ninguém. Sem menosprezar ou desconsiderar.

Acrescentando o nosso humilde contributo.

 

Como diria Arquimedes, tenhamos nós um ponto de apoio (a humildade) e uma alavanca (a ambição) e levantaremos o mundo.

 

Jorge Saraiva

 

09
Set19

Sê criança, sem vergonha (Humildade – 8)

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People - Hai Nguyen Tien.jpg

Foto: People - Hai Nguyen Tien

 

Ser humilde é teres a noção da criança que outrora foste. A vida encarregou-se de te dar tempo e tu deste-te ao encargo de te dares o que quiseste, ou o que conseguiste. Pelo caminho ganhaste e perdeste. Às vezes avançaste, noutras recuaste. Desde o início dos inícios criaste relações, primeiro com o ventre materno e, pouco mais tarde, com todos os outros que tocaste e te tocaram. Aprendeste a deslocar-te no mundo e a comunicar. Afirmaste-te num espaço, mostrando quem és, o que te define, no que acreditas. Umas vezes fizeste-o bem, noutras nem por isso. Talvez a culpa não seja tua, mas da família onde cresceste, que, por sua vez, cresceu numa família maior que ela. Talvez a culpa seja da sociedade, que te empurrou para a cultura do ter e não do ser. Sim, eu sei que já te mostraste arrogante e pretensioso. Sei que já foste tudo menos humilde. Sei que já mentiste, sei que já manipulaste. Sei que já te mostraste quem não és. Mas, como se diz por vezes, levianamente, “não faz mal…”. Não faz mal porque também eu já o fiz. Eu e todos os que conheces e conhecemos. Vivemos numa inquietude constante, numa corda fina que calcorreamos com um certo medo, com medo de que o medo nos apanhe. E assim construímos muros que nos protegem, mas que nos separam. A racionalização, a justificação e a segurança mantêm-te muitas vezes preso, colado a uma imagem que com muito custo construíste, e com muito esforço escondeste tudo o que não és. E, afinal, quem és tu? O relógio que te adorna o pulso? O carro que te preenche a garagem? O telemóvel que trazes no bolso? Ou os likes que tens nas fotos de verão? Enfim, se calhar tudo isso e nada disso. Curiosamente, por vezes até escondes o que tens, para te mostrares humilde. Ou então mostras, mas de forma despretensiosa, como se o objeto em causa fosse uma banalidade que não te custa a pagar. Contudo, mais danoso para ti e para todos, não é quando se fala de materialidade, mas sim quando remete para a consciência e comportamento. É agires em conformidade. Olhares para o mundo e para os outros com respeito e admiração. Não dares as pequenas e as grandes coisas por certas. Dar para receber. Ser humilde para aceitar o que te dão. Ser humilde é teres a noção da criança que outrora foste.

 

Rui Duarte

 

06
Set19

Essa ponderável espessura das coisas tristes (Humildade - 7)

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Woman - Claudio Scott.jpg

Foto: Woman - Claudio Scott

 

Acordar, na travessia da noite, para a aflição da pele. Para o incómodo fino, por contato opressivo, do lençol de cambraia fina que nos cobre. Ou para o aperto estreito e mordente do elástico das calças do pijama, ali, cortando a linha da cintura, como que nos dividindo em duas metades de corpo. Dolorosamente. Acordar, na lâmina do pesadelo, para o tormento da memória, ao peso do silêncio escuro que nos sitia.

As coisas – reflito, tentando alienar a consciência exacerbada do meu corpo – têm, todas, um peso próprio: mas sempre variável, sempre dinâmico, sempre circunstancial, e, dentro dessa circunstancialidade, sempre subjetivo. Uma gravidade única, em cada momento, para cada pessoa. Uma carga diferente para cada estado de alma e para cada alma. Uma pressão desigual em cada corpo, sob iguais condições, e para diferentes condições, num mesmo corpo.

Tudo depende do tempo, penso, arrastando o meu vertiginoso raciocínio para ventos, humidade, pressão atmosférica, anticiclones e ondas de calor.

 

Não.

Não, condições atmosféricas não têm nada a ver com isso.

Tudo depende do Tempo. Tempo, aquele feito de instantes, de esperas e de esperanças, de demoras e de esquecimentos. Tempo, aquela força centrífuga que sempre nos salva, enquanto nos devora. Tempo, aquele que se divide, generosamente em “tempos” – de luz, de escuridão, de riso, de choro, de alegria, de angústia, de amor… ou de ódios (digo «ódios», porque quero dizer ódios, aquelas pequenas raivas e ressentimentos não-tão-viscerais-como-Ódio-com-letra-grande-e-no-singular).

Ah, a insuportável espessura do silêncio, sobre o meu corpo mordido pela insónia! A veloz fuga dos meus pensamentos, através do vazio que me encapsula e me transporta além-universo, além-razão, além-noite, além-pele.

 

Além – Eu. Como numa enormíssima tela, movendo-me penosamente, cercada de adversíssimas condições de vento, humidade, pressão – um outro tempo, num outro Tempo… Eu, carregando uma carga esmagadora sobre as minhas costas estreitas e magoadas. Eu, tentando sorrir, apesar das dores, conseguindo levar o Amor dividido em duas metades, uma em cada mão, e ainda levando nos olhos a visão de um céu só meu. Eu, depreciando o peso das coisas tristes. Eu, apreciando o valor dos instantes felizes. Tanto Tempo, tantos tempos...

 

Regresso ao silêncio, à escuridão segura do meu quarto. Regresso – húmil, apaziguada, condescendente. O meu coração aquieta os monstros que o habitam, por milagre habitual.

O lençol de algodão toca a minha pele como uma carícia, o seu roçar é fresco, leve, macio, reconfortante. A minha cintura ajusta-se, dócil, ao elástico brando das calças do pijama, e o meu corpo reconstrói-se, como um puzzle de encaixes fáceis e perfeitos.

Ouvir a noite, lá fora, amanhando os mistérios da reparação, dos ciclos, dos tempos. Adormecer, ao sereno marulhar da mente – e à oblação do corpo aos ventos da Humildade. E da Gratidão.

 

Teresa Teixeira

 

Porto | Portugal

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